COVID-19: por que nem sempre “força maior” é fundamento válido? (Artigo de Bruno Rodrigues Zanello)

A pandemia do coronavírus (COVID-19) balançou o mundo, modificando profunda e sistematicamente as relações econômico-sociais e os valores ético-morais. Em síntese, já alterou e promete alterar ainda mais as bases da sociedade.

O Vaticano anunciou que as celebrações da “Semana Santa” – uma das principais datas do catolicismo – serão realizadas sem fiéis na Praça de São Pedro. Governos determinam o fechamento de estabelecimentos. Decretos limitam a circulação de pessoas. O cenário é de metrópoles desertas e o sentimento é de impotência coletiva.

O impacto do COVID promete ser maior do que os das Grandes Guerras Mundiais. O cenário pandêmico não terá precedente.

A última grande epidemia ocorreu em 1918, conhecida popularmente por “gripe espanhola” – ainda que não tenha surgido na Espanha. Nela, o isolamento foi a regra. O Senado e a Câmara permaneceram vários dias fechados. O presidente eleito, Rodrigues Alves, não tomou posse, vítima da gripe.

A epidemia ensinou! No “dia seguinte”, o Brasil passou a investir no sistema de saúde; as crianças foram aprovadas nas escolas, mesmo sem aulas e outras tantas medidas foram tomadas[1]. No mundo, a gripe infectou 500 milhões de pessoas (um terço da população mundial), levando a óbito cerca de 50 milhões.

De um lado, o COVID-19 apresenta-se em um mundo diferente, mais globalizado, integrado, o que acelera a propagação do vírus. Por outro lado, a ciência hoje avança ainda mais e as respostas prometem ser mais rápidas.

Apesar da celeridade nas respostas, evidente existir uma assimetria entre a velocidade dos impactos do vírus e as medidas tomadas. Assim como ocorreu durante a “gripe espanhola”, foi determinado o isolamento, interrompendo as atividades industriais e comerciais de várias empresas, o que evidentemente vai gerar impactos econômicos macroestruturais.

 

Força maior

A inadimplência passará a ser mais frequente, trazendo a tona institutos jurídicos como o caso fortuito e, especialmente, a força maior. Teoricamente, entre os institutos existe uma diferença que, tecnicamente, não é relevante, visto a opção legislativa de produção de iguais efeitos.

Força maior é um fato jurídico natural independente da vontade humana. Assim como no “caso fortuito”, o ponto central é a “irresistibilidade do fato”[2].

Todavia, para Maria Helena Diniz, não basta ocorrer um evento extraordinário e inesperado, mas deve superar o razoavelmente esperado[3]. O Código Civil brasileiro, em seu artigo 393, parágrafo único, diz que a caracterização depende da imprevisibilidade ou inevitabilidade dos efeitos.

Aqui, cumpre destacar que o coronavírus apresentou seu primeiro caso registrado ainda em 2019, descartando – ou enfraquecendo – o argumento da imprevisibilidade. Ainda, a respeito da inevitabilidade dos efeitos, em especial em relação ao governo, evidente que não poderia ser caracterizada, considerando que medidas de contenção de fluxo internacional-nacional e investimentos na área de saúde poderiam ter sido tomadas. Também os empregadores – em especial, os grandes – poderiam tomar medidas de segurança interna no ambiente de trabalho e de recolhimento de capitais para o momento de crise.

Assim, no eixo das lições do catedrático professor Antônio Chaves, a força maior apenas é extintiva da obrigação se perfeitamente caracterizada, ou seja, se absolutamente imprevisível e inevitável o ocorrido[4], o que não aparenta ser o caso do COVID, que apesar de extraordinário, foi anunciado com certa antecedência.

Para além da imprevisibilidade dos efeitos, mesmo que caracterizada a força maior, o dever de contraprestação pecuniária do empregador permanece. A lei civil já consagra que mesmo no caso de força maior, a obrigação remanesce nos casos onde existe dever jurídico pretérito, em virtude da natureza obrigacional.

O dever de adimplemento salarial no período de afastamento decorre do princípio da proteção do trabalhador, norma jurídica que está na base do direito do trabalho, conforme se depreende do art. 7º da Constituição da República de 1988. Os inúmeros incisos da Carta Magna são claros ao enunciar o salário como meio de subsistência, prevalecendo sobre qualquer outro valor jurídico do trabalho.

A jurisprudência do STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem apresentado entendimento, em casos consumeristas, que a força maior não fica caracterizada nos casos de íntima vinculação à atividade econômica. Ora, a contraprestação é inerente ao vínculo, afinal, conforme já consagrado na doutrina e na jurisprudência, o empregador paga pelas “horas à disposição”, não pelo trabalho em si. Em outras palavras, o empregador paga em razão do vínculo, não pelo trabalho prestado.

Dessa forma, tendo o empregador o dever legal de adimplir, não pode suscitar força maior, conforme a letra da lei. É o empregador quem assume o risco da atividade econômica, devendo prevenir-se de todas as contingências possíveis, como crises econômicas, como crises sociais.

Entendimento diverso seria o mesmo que afirmar que em um cenário de crise econômica, por exemplo, o empregador poderia suscitar força maior para inadimplir os salários, o que não é admissível, conforme revela o entendimento dos tribunais. A atividade econômica é composta de riscos, assumidos pelo empregador.

Por fim, merece destaque que o fundamento jurídico da “força maior” não opera como um “super-trunfo”, como alguns tem sustentado. A simples ocorrência de evento extraordinário não pode significar um “cheque em branco” ao empregador para operar modificações de qualquer natureza nas relações juslaboralistas.

O empregador deve demonstrar, por provas robustas, que a redução na produção é efeito da “força maior” alegada e não de mera opção econômica ou alocativa. Ora, a “força maior” não pode servir como estratégia de burla à lei, fragilizando as garantias do trabalhador, sob pena de caracterizar abuso de direito. Assim, o empregador deve demonstrar o vínculo entre as medidas e o COVID-19. Por exemplo, precisa ser comprovado que a redução na produção decorreu unicamente da pandemia e não por outras variáveis de mercado (como demanda menor, recessão econômica antecedente, etc.).

Analisando o contexto brasileiro, percebe-se que muitas empresas estão se aproveitando – infelizmente – do cenário pandêmico para operar modificações nos contratos de trabalho por opções estratégico-econômicas, sem respeito às garantias legais. Algumas, inclusive, valendo-se da “economia de crise”, aumentaram suas produções, mas seguem aplicando as medidas de exceção previstas nas medidas governamentais.  Cabe ao Judiciário estar preparado para enfrentar tais manipulações, garantindo que socialmente a experiência pandêmica seja menos traumática e que possamos, como sociedade, sair do caos fortalecidos. É hora também dos empregados, sindicalizados ou não, procurarem o sindicato da categoria, fortalecendo nas lutas contra as arbitrariedades.


(*) Bruno Rodrigues Zanello é mestrando em direito na UFPR e advogado no escritório Sidnei Machado Advogados.

[1] Para mais informações, ver: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-16/em-1918-gripe-espanhola-espalhou-morte-e-panico-e-gerou-a-semente-do-sus.html. Acesso em 06 de abril de 2020.

[2] DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Volume II: D – I. São Paulo, Forense, 1975, p. 711 e TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforma a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 790p.

[3] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 1: teoria geral do direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 336

[4] CHAVES, Antônio. Caso fortuito ou de força maior. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 61(2), 56-66. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66485, 1965.