por Sidnei Machado
(Advogado e professor da Universidade Federal do Paraná)
O segundo governo da presidente Dilma Rousseff inicia sob o espectro de uma profunda reforma previdenciária com derrogação de direitos sociais. Apresentada como alternativa à crise fiscal que se instala no país, foram editadas no dia 30 de dezembro duas normas de urgência: as Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665. As medidas alteram as regras da concessão dos benefícios da pensão por morte, do auxílio-doença e do seguro-desemprego.
Introduzidas em caráter emergencial, em meio a um momento econômico e político instável e delicado, as normas produzem redesenho normativo substancial na institucionalidade e na garantia desses direitos. Atrelada às opções de saída da crise, a reforma tem diversos pontos críticos.
Essas foram as primeiras medidas de políticas de austeridade do governo Dilma, com o declarado objetivo de promover uma economia em torno de R$ 18 bilhões por ano, segundo cálculos do próprio novo Ministério da Fazenda. Representam medidas de forte impacto e com amplo significado para as políticas de proteção social, na medida em que estão alinhadas às tendências de cortes de gastos sociais iniciadas por Joaquim Levy, o novo Ministro da Economia. Apesar das boas intenções que sempre são apresentadas na exposição de motivos dessas normas – no caso, o argumento é de que as MPs visam fazer “ajustes” e “corrigir distorções” – em essência trata-se de reduzir o espaço da proteção social, com restrições a direitos sociais.
O apropriado qualificativo das mudanças é de que elas aparecem “mais econômicas”, já que dissociadas de qualquer proposta de reestruturação normativa ou de articulação com uma maior proteção social desses institutos. Não é por outro motivo que estão recebendo um rechaço amplo, não somente de sindicatos e atores sociais, como da própria direção do Partido dos Trabalhadores (PT), que as qualificou publicamente como um “erro político”, de sorte que a aprovação definitiva das medidas no Congresso Nacional enfrentará um impasse a partir da base do governo e de setores à esquerda.
Outro ponto político bastante crítico é que são reformas inesperadas, fruto de uma mudança de rumo e de propósitos do que se deu no acirrado debate eleitoral. De forma veemente a então candidata Dilma Rousseff defendeu a manutenção dos direitos sociais, ao mesmo tempo em que acusava ao candidato adversário Aécio Neves, do PSDB, de representar uma ameaça potencial aos direitos sociais.
Um segundo ponto crítico refere-se à apresentação das reformas sociais como medidas de urgência, através do mecanismo das Medidas Provisórias, com força de lei vigência imediata, o que naturalmente restringe a possibilidade de um amplo debate público sobre as matérias. Sobre este aspecto há um relevante (e necessário) debate sobre a constitucionalidade formal e material das MPs, o que já se dá em três Ações Direitas de Inconstitucionalidade (ADI) que tramitam no Supremo Tribunal Federal (ADI 5230, 5232 e 5238).
Sobre o conteúdo das medidas, um panorama de como restringem direitos pode ser compreendido a partir da análise da reforma das pensões por morte, tal como proposta pela Medida Provisória 664, que altera tanto a Lei n. 8213/91, que regula o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), quanto a Lei 8.112/90, que regula o Regime Próprio de Previdência Social do Servidor Público Federal (RPPS). Embora o governo recuse a qualificação de uma reforma profunda, já que alega fazer correção de distorções, o que se percebe no tema das pensões por morte é que está a se promover a maior reforma paradigmática depois da Constituição de 1988.
Em concreto, tanto para os trabalhadores do setor privado quanto para os servidores públicos, a MP 664 passou a exigir como novos requisitos para a concessão da pensão por morte: (i) período mínimo de carência de 24 contribuições mensais, quando antes era inexistente; (ii) tempo mínimo de casamento ou início de união estável de dois anos, que antes não se fixava prazo; (iii) tratamento diferenciado em relação ao tempo de duração da pensão em razão da idade do cônjuge ou companheiro (a) e de sua expectativa de sobrevida obtida a partir da Tábua Completa de Mortalidade construída pelo IBGE, vigente no momento do óbito do servidor (a pensão passará a durar, conforme a idade do cônjuge ou companheiro (a) sobrevivente, entre 3 anos, 6 anos, 9 anos, 12 anos, 15 anos ou de forma vitalícia). Além das restrições de acesso ao benefício, a MP trata de reduzir o salário de benefício de 100% para 50%, permitindo o acréscimo de cotas de mais 10% para cada dependente até o limite de 100%. Como se vê, são medidas, por si só, restritivas.
No caso brasileiro, essas mudanças representam uma abrupta reversão na política expansionista da pensão por morte que vinha, lentamente, sendo concretizada desde a Constituição de 1988.
A Constituição de 1988, em seu artigo 201, inciso V, ampliou a pensão por morte ao assegurar tanto ao homem quanto à mulher, fazendo prevalecer como princípio da igualdade.
Em 1995, apesar de duas emendas constitucionais restritivas, a Lei 9.032 ampliou o valor da pensão por morte de 50% para 100% – expansão que agora a MP 664 quer fazer retroceder.
Na mesma linha expansionista de afirmação de direitos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) passou a assegurar a pensão por morte para casos de união estável homoafetiva.
Não se ignora que há um estendido debate sobre o futuro do modelo clássico de pensões por morte à nova realidade demográfica, as novas configurações familiares e, claro, aos desafios de financiamento do sistema de Seguridade Social. Porém, algum ajuste deve se dar nos limites da Constituição, em respeito aos direitos fundamentais sociais que preserve a dimensão de solidariedade que informa a Seguridade Social.
A evolução normativa da pensão por morte no Brasil, de inspiração continental com raízes no modelo bismarkiano de proteção social, tem como fundamento a substituição da renda gerada pela morte de uma pessoa com respeito aos seus dependentes presumidos: cônjuge ou companheiro e filhos. Outros dependentes que comprovem dependência econômica, como pais e irmãos, na ausência de dependentes de primeiro grau, também têm acesso à prestação. Apesar de tradicionalmente não se exigir carência de contribuições, a prestação da previdência social tinha como pressuposto naturalmente a condição de contribuinte do falecido. Nessa perspectiva, o modelo brasileiro tem como fundamento uma hibridação entre o caráter contributivo e a necessidade da prestação.
As propostas de reformas na pensão por morte veiculadas pela MP 664, ao fixarem uma carência de 24 meses e limitarem o acesso à prestação em caso de matrimônio depois de dois anos e, ainda, ao estabelecer um limite temporal da pensão a depender da idade do cônjuge sobrevivente, pretendem fazer uma clara aproximação ao modelo de ênfase contributiva. Na introdução do limite temporal está implícita na proposta que o beneficiário, em razão de sua idade biológica, terá capacidade de conseguir nova renda.
Nesse sentido, pode haver uma mudança paradigmática na prestação da pensão por morte. O benefício continua sendo, segundo o próprio texto da Constituição, uma prestação contributiva vinculada à Seguridade Social. Contudo, passam a ser valorizados os elementos vinculados estritamente a situações de necessidade ou dependência econômica, como garantia de um mínimo de renda ou para compensar o dano da perda de renda da qual participava o cônjuge.
Por caráter contributivo não se exige uma correspondência plena entre contribuição e prestação, mas uma equidade mínima em casos de necessidade, ainda que essa necessidade seja legalmente presumida. A tradição na jurisprudência brasileira, em direção oposta, reconhece o caráter contributivo da pensão por morte do ponto de vista do financiamento, porém, para a prestação previdenciária tende a vinculá-la à compensação do lucro familiar cessante.
A instituição do critério de temporalidade da pensão por morte vinculado à expectativa de sobrevida do cônjuge sobrevivente ou companheiro (a), multiplicado pela sua idade, é um elemento igualmente problemático do ponto de visto da garantia dos direitos, na medida em que introduz um critério quase atuarial na elegibilidade da prestação. Pelo novo critério, observada a atual tabela de expectativa de sobrevida medida pelo IBGE, se o cônjuge ou companheiro (a) for menor de 22 anos, sua expectativa de sobrevida será maior de 55 anos, de modo que sua pensão durará apenas 3 anos. Se o cônjuge ou companheiro (a) for maior de 22 anos e menor de 28 anos, sua expectativa de sobrevida será maior que 50 anos e menor ou igual a 55 anos, e a duração da pensão será de 6 anos. Na última faixa da tabela, para o cônjuge ou companheiro (a) maior de 44 anos, como sua expectativa de sobrevida é de até 35 anos, sua pensão será vitalícia. Esse é o modelo similar ao adotado para o cálculo das aposentadorias desde 1999, introduzido no Fator Previdenciário, cuja fórmula está prestes a ser extinta via projeto de lei, que se revelou insegura porque utiliza uma expectativa de sobrevida média no país, entre homens e mulheres.
Com efeito, a fixação de carência e tempo mínimo de casamento ou início de união estável não são requisitos que visam exclusivamente evitar fraudes à prática alheias ao objetivo da prestação, como justificou o governo, pois introduzem no sistema normativo alterações no modelo constitucional de proteção social à família e, por consequência, no fundamento da pensão por morte. A eliminação do critério de vitaliciedade da pensão para a maioria dos casos e a redução do salário de benefício da pensão para até 50% do salário de contribuição do falecido constituem meros cortes e reduções no valor das prestações da pensão por morte.
Curitiba, 25 de fevereiro de 2015.