(*) por Sidnei Machado
A interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento de 20 de fevereiro de 2013, ao definiu ser a Justiça Comum Estadual competente para julgar processos contra os fundos de pensão, é fruto de inconsistente interpretação jurídica da Corte. A frágil tese jurídica que prevaleceu, seguida por seis ministros e rejeitada por três outros, entre os que votaram na ação de repercussão geral, oriunda de dois Recursos Extraordinários (REs 586453 e 583050), foi de que a relação entre participante e o fundo de pensão não tem relação com o contrato de trabalho.
O erro da premissa acolhida foi ignorar a situação de fato mais relevante: a imensa maioria dos fundos de pensão brasileiros é estruturada e têm origem numa obrigação vinculada à relação de emprego. Os fundos de pensão, sobretudo os das empresas públicas criados na década de 70, a exemplo da Petrobrás, oferece benefício da complementação de aposentadoria como um dos maiores atrativos da carreira. Além disso, toda estratégia de recursos humanos e de política salarial dessas empresas é essencialmente vinculada aos benefícios da complementação da aposentadoria. Como desvinculá-lo, então, completamente da relação salarial e de emprego?
A valoração dessa situação fática vinha corretamente sendo o argumento principal da jurisprudência da Justiça do Trabalho para reconhecer a sua competência para julgar a matéria. Essa interpretação acertada tinha como fundamento o artigo 114 da Constituição que, a dispor sobre a competência jurisdicional, indica textualmente que a competência da Justiça do Trabalho alcança as ações decorrentes de relação de trabalho. Essa interpretação também é harmônica com a clara política de ampliação da competência do judiciário trabalhista prevista na Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004.
Mas quais foram os argumentos do STF para restringir a competência da Justiça do Trabalho na matéria e alterar a sua jurisprudência por mais de 30 anos?
O argumento jurídico usado na decisão se deu basicamente com base novo texto do artigo 202, § 2º, da Constituição, introduzido pela emenda constitucional n. 20, de 15 dezembro de 1998, da chamada reforma previdenciária, cuja nova redação teria afastado, segundo os argumentos da maioria vencedora na decisão, a integração da complementação de aposentadoria do contrato de trabalho. Esse dispositivo, que a rigor nada dispõe formalmente sobre competência material, teve como objetivo único definir que a contribuição previdenciária não tem natureza de salário para fins fiscais. Extrair apenas desse único dispositivo a conclusão pela natureza privada da relação, levou o STF a deliberar sem razoável argumento.
O fato é que o STF deixou de lado a situação fática, que era relevante na interpretação para dar prevalência à tese que pretende estruturar o modelo previdenciário complementar numa estrutura jurídica e política individualizada, numa relação privada entre trabalhador participante e fundo de pensão, regida apenas pelo chamam de “contrato previdenciário”, ou seja, um mero produto do mercado de seguro previdenciário, regulado essencialmente pelo contrato civil.
Para os defensores desse modelo de individualização, a formação da poupança de previdência complementar é uma obrigação individual do cidadão. E a regulação jurídica deve se dar pelo contrato civil e mercantil. É um debate de fundo que esteve presente nas reformas previdenciárias, cujo claro pressuposto político que o sustenta conduz à fragilização dos princípios da universalidade e solidariedade dos sistemas previdenciários. No debate judicial os defensores desse modelo sustentam, desde 1998, como consequência, a imposição do “contrato previdenciário”, desvinculado da relação de trabalho. Com isso se pretende afastar a matéria do controle da Justiça do Trabalho, cuja interpretação, a partir do princípio da proteção, que é a sua razão de ser, tende a aplicar a norma mais favorável ao participante e restringir as alterações de contratos que lhes são prejudiciais.
O STF, portanto, encampou parte relevante da tese de “contrato previdenciário” na medida em que não vislumbrou o vínculo da complementação de aposentadoria com o contrato de trabalho. Nesse sentido, ao lado de uma derrota jurídica e política dos participantes, promove-se um esvaziamento do princípio constitucional da solidariedade que estrutura o modelo previdenciário complementar brasileiro.
A definição da competência da Justiça Comum para processar e julgar essas demandas tem o grave efeito imediato de restringir o acesso à justiça a esses cidadãos. A Justiça Comum, se comparada à Justiça do Trabalho, não é gratuita e, ainda é muito morosa. A crescente instabilidade do vínculo jurídico entre participante e fundo de pensão, especialmente oriunda das alterações do contratado, sejam elas unilaterais ou precariamente consensuados, com a justificativa de permitir ajustes necessários ao equilíbrio financeiro e atuarial dos planos, necessitam de um acesso a uma justiça efetiva que corrija os sistemáticos abusos de alterações desproporcionais e prejudiciais aos participantes, notoriamente à parte fraca nessa relação.
Há, ainda, outros riscos associados ao conteúdo da decisão do STF. Os ajustes nos planos previdenciários de alguns fundos de pensão têm sido objeto de negociação coletiva tripartite entre os fundos de pensão, empresa e sindicatos profissionais. A experiência nova que vem se constituindo, de maior diálogo e transparência na participação dos representantes dos trabalhadores na gestão do fundo e na defesa dos interesses dos trabalhadores, inclusive com negociação coletiva e produção de acordos coletivos, corre o risco de retroceder. Se o STF confere conteúdo do contrato como desvinculado do contrato de trabalho, em tese, poderia levar à conclusão de que não se justificaria a participação dos representantes dos trabalhadores na negociação.
A decisão judicial do STF constitui grave incoerência de fundamentação. Apesar de a decisão vincular somente os novos processos judiciais a serem ajuizados, o debate sobre a definição da competência e seus efeitos mais profundos no sistema complementar deve continuar, pois é crescente judicialização dos conflitos entre participantes e fundos de pensão. Por outro lado, a maioria vencedora na decisão do STF não é sólida, já que três ministros ficaram vencidos e outros dois que, apesar de não votarem, se pronunciaram fortemente contrários à tese da maioria.
(*) Sidnei Machado é advogado, Doutor em Direito do Trabalho e professor da UFPR.
Sidnei Machado Advogados Associados, 28 de fevereiro de 2013.