Sidnei Machado (*)
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1. Riscos sociais e a sua reparação
Os riscos sociais evoluem e a sua percepção é substancialmente modificada. Fruto da urbanização massiva e das novas formas de organização da vida social no marco do capitalismo, novos riscos emergem ao lado dos riscos sociais históricos. Vivenciamos nas últimas três décadas a experiência da intensificação dos riscos em série, tal como ocorre com as grandes catástrofes naturais, os atos de terrorismo, as contaminações de animais e pessoas e, nesse mesmo espectro, devemos inserir os acidentes de trabalho ampliados, com explosões em empresas, vazamentos de produtos nocivos, químicos e radioativos em grandes proporções. É claro que o simples progresso técnico, com seus novos processos e produtos, produz novos e maiores riscos, porém o dado novo é que eles são cada vez mais difusos e coletivos, assim como as suas causas e efeitos.
É por isso que a sociedade contemporânea é marcada pela tendência à generalização da cobertura e reparação dos mais diversos riscos, por meio amplos sistemas de seguro, responsabilidade e solidariedade. Cada vez mais se exige maior proteção e cobertura de riscos, o que se dá com a gradativa ampliação do campo da responsabilidade. Intensificam igualmente os mecanismos que asseguram a indenização de riscos mal identificados a priori nos quais a proporção de nexo e de culpa são de difícil cobertura pelos mecanismos clássicos do seguro. Trata-se, fundamentalmente, de uma abertura nova, cujo processo responde à percepção da necessidade de rápida indenização da vítima, numa clara linha evolutiva do seguro à solidariedade.
Há, por outro lado, um forte sentimento social que todo dano deve ser imputado a uma pessoa privada ou ente público, a depender das circunstâncias, capaz de gerar direito à reparação. Essa tendência revela também um processo de crescente socialização do risco. Um bom exemplo são as indenizações judiciais obtidas por fumantes vítimas de doenças pulmonares perante as cortes americanas. A Suprema Corte Americana alterou a sua jurisprudência de mais de quatro décadas e, desde 2008, passou a acolher a responsabilidade objetiva da indústria do tabaco pelos danos à saúde dos consumidores fumantes. A ideia de reparação integral do dano evolui igualmente para abarcar os mais diversos prejuízos (material, moral, estético, futuros e hipotéticos, dentre outros). A noção de prejuízo sofreu sensível modificação e, por isso, busca-se cada vez mais a reparação de dano em situações em que não há prova inequívoca de relação da causalidade e de culpa, ou elas são de difícil identificação.
Para dar conta dessas novas dinâmicas é que os regimes de responsabilidade são ampliados para contemplar situações maiores de responsabilidade, inclusive nas relações privadas, o que fez com que o recurso à presunção de culpa tenha caminhado na direção de uma crescente socialização do risco. Evidente que a falta ainda subsiste no regime jurídico da responsabilidade, mas é cada vez maior a exigência de prova de falta grave da vítima. A responsabilidade civil individual, da teoria da culpa, cede maior espaço para a teoria do risco criado, tal como já previsto no sistema do Código de Defesa do Consumidor brasileiro(Lei n. 8.078/90, art. 12). O que se busca não é mais a indenização como fim, mas como critério de proteção social.
Essas novas pré-compreensões culturais, as quais o saber jurídico é sempre dependente, vêm sendo assimiladas lentamente pelo sistema jurídico, mas é a doutrina e jurisprudência que têm tido um papel fundamental na compreensão contemporânea da nova dinâmica dos riscos sociais e da necessidade de efetiva reparação, precedendo, em muitas situações, à atuação legislativa.
2. Reparação dos riscos do trabalho
A grande crise do sistema de responsabilidade civil dos acidentes de trabalho conduziu, já no século XIX, a grande reação frente à injustiça resultantes do modelo civilista da reparação civil. Essa grande viragem paradigmática havida na jurisprudência francesa do final do século XIX, possibilitou a instituição da lei francesa de 1898 que, doravante adotou o pressuposto do dever de reparação mesmo em casos de falta da vítima ou de caso fortuito. Desse modo, depois de romperem com a caridade assistencial, os mecanismos de seguro de acidentes de trabalho se desenvolveram inspirados no mutualismo e permitiram a institucionalização da responsabilidade independentemente de culpa.
Trata-se de um marco fundamental na legislação da infortunística. François Ewald, em sua obra seminal L´Etat Providence, constata que a emergência da legislação social dos acidentes de trabalho representa a grande experiência moral do ocidente. Enquanto na sociedade pré-industrial a sorte, o azar, o fortuito, a fatalidade, são produtos da natureza, da existência do mal, as respostas eram buscadas no conhecimento de Deus; na modernidade esse processo se inverte e as respostas passam a ser extraídas das relações sociais, que assumem nova situação ontológica. Para Ewald, o acidente de trabalho tem duas características: primeiro, é a sua previsibilidade, calculabilidade, ou seja, ele tem uma objetividade, que escapa à prudência e de vigilância individual; segundo, o acidente é produto da ação coletiva, da sociedade de massa. O acidente de trânsito pode ser atribuído a uma falha ou erro do condutor, mas também pode ser justificado em grande medida por probabilidade de circulação nas ruas de uma grande cidade (1).
Nessa perspectiva, François Ewald observa que a lei francesa de acidentes de trabalho de 1898 foi a responsável para criação de uma racionalidade jurídica moderna. Até então havia apenas o Código Civil de Napoleão de 1804, cuja atribuição era editar leis de caráter geral e abstrato, resultado da elaboração racional do legislador. Com a emergência dos seguros de acidentes de trabalho opera-se uma mudança profunda de paradigma legal, com a introdução de “norma”, que se diferencia da “regra”, porque estabelecida com a utilização de elementos estatísticos (demógrafos que explicam acidentes, suicídios, casamentos, etc.), e há colaboração de gestores burocráticos (engenheiros, médicos, psiquiatras, sanitaristas, dentre outros). Esse modelo é que preponderou na regulamentação dos sistemas de reparação dos acidentes de trabalho.
A partir dessa transformação paradigmática, legislativa e jurisprudencial, é possível compreender que o modelo de reparação de dano dos riscos do trabalho, nas várias experiências nacionais, incluindo a brasileira, propiciou o desenvolvimento da tutela jurídica moderna de cobertura desses riscos, cuja técnica, a princípio inspirada no seguro privado, fez universalizar os princípios da seguridade social, justificado no princípio da solidariedade. A preocupação com o dever de indenização da vítima foi, assim, alargando-se gradativamente (seguro, indenização, recuperação, reabilitação, e assim por diante) até o fortalecimento da ideia de proteção eficaz, por meio da prevenção contra os riscos(2).
A nova dinâmica dos agravos à saúde dos trabalhadores no século XXI, em especial das emergentes doenças de origem ocupacional, ampliou o conteúdo e a noção de acidentes de trabalho, para aproximá-lo ao âmbito da saúde pública e da questão ambiental. Por isso, a velha teoria do risco profissional se vê forçada a promover um novo alargamento para contemplar a proteção ao meio ambiente de trabalho numa perspectiva etnocêntrica, superando o restrito sentido da proteção do corpo do trabalhador para promover a defesa de um ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado.
3. Da culpa ao risco
O Brasil não tem um quadro jurídico definido para os acidentes de trabalho. A previdência social adota a teoria do risco social desde 1967;(3) o direito do trabalho se estrutura em torno da teoria do risco profissional (CLT e NRs); as empresas desenvolvem modelo tecnicista de proteção (gestão da segurança, focados na engenharia de segurança e no meio ambiente). Na outra ponta, o Estado brasileiro incorpora em sua política nacional de saúde a regulamentação das questões ambientais do trabalho, a exemplo do critério epidemiológico. Conquanto legislações fragmentárias e esparsas, todas tendem em alguma medida à promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reparação, numa perspectiva interdisciplinar.
Ocorre que o modelo de prevenção e reparação estatuído na Constituição de 1988, em seu art. 7º, XXVIII, evidencia que temos um critério de proteção pela teoria do risco social (regime especial de seguro obrigatório de acidentes de trabalho) e a responsabilidade civil pelo dano pela teoria da culpa, salvo exceção legal. Em suma, a reparação de acidentes de trabalho no sistema jurídico brasileiro se apoia na reparação forfetária a cargo da seguridade social, cumulada com a reparação pela responsabilidade civil. A evolução da percepção dos acidentes de trabalho tem, no entanto, justificado uma harmonização entre os dois modelos de indenização para conciliar socialização do risco, responsabilidade e prevenção. Não há a rigor contradição entre risco social e profissional e as políticas de proteção à saúde pública, pois a responsabilidade pela prevenção tem o mesmo fundamento da responsabilidade pela reparação do dano. Por isso é natural que persista sempre uma tensão permanente entre socialização do risco (a cargo de seguridade social) e responsabilidade civil (a cargo do empregador).
A teoria clássica da responsabilidade há muito se revelou inadequada e insuficiente. Implicava na prova da culpa de outrem, daí a justificar o desenvolvimento de um sistema de proteção e reparação específico fora dos cânones do Direito Civil. Embora a reparação civil tenha se fixado no corpo do Código Civil, a par da cobertura do risco pela seguridade social, ainda prossegue a sua análise vinculada à compreensão da relação saúde-trabalho, cujos conceitos emergem essencialmente do processo de trabalho (4).
Isso tudo está a justificar que, para além da previsão formal dos dispositivos legais, impõe-se a busca do conteúdo substantivo dos textos normativos. Daí a grande relevância de se indagar pelo conteúdo material da Constituição, ou seja, de se extrair o sentido axiológico do dispositivo analisado. Nessa perspectiva, a questão primeira a ser formulada é: quais são as premissas axiológicas subjacentes à Constituição de 1988 em matéria de acidentes de trabalho?(5) É inegável que ainda temos um Estado preocupado em realizar a justiça social e o direto à saúde e segurança no trabalho ocupa um lugar central na configuração dos direitos sociais. Essa constatação é feita a partir do conjunto de regras e princípios que enunciam o Estado Democrático Social, com direitos de cidadania vinculados ao primado do trabalho, cuja ideia-força ainda é emprego e proteção social sistêmica (arts. 1º, 6º, 7º e 170)(6).
É indiscutível que a Constituição brasileira propugna pela proteção efetiva dos trabalhadores como um valor fundamental. Esse é o conteúdo que se extrai também do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio que goza de uma hierarquia axiológico-normativa na Constituição. (7) As demais previsões constitucionais do texto, que evocam prevenção contra acidentes de trabalho, reparação acidentária e reparação civil, estão fundadas na mesma premissa. O art. 7º da Constituição contém um rol de direitos fundamentais (não necessariamente trabalhistas, a exemplo do direito à aposentadoria), em geral exercidos em face dos particulares. Diante de um direito fundamental, cabe definir a esfera de proteção que ele evoca. Nesse sentido, o inciso XXVIII do art. 7º representa uma cláusula geral e, assim, não aceita mera subsunção lógica ou mesmo definição conceitual. A sua eficácia está condicionada aos fatos concretos da vida. A leitura que se deve fazer do sistema constitucional em conjunto com a evolução da responsabilidade civil sem culpa, embora denote persistir em nosso sistema a culpa como regra geral, frente à crescente dificuldade de prova do nexo e da culpa, o imperativo do dever fundamental de indenizar o prejuízo sofrido pela vítima coloca quase em um segundo plano o elemento subjetivo da culpa.
4. Valoração final
O direito do trabalho tem, é verdade, imensas dificuldades de promover um correto enquadramento da questão da saúde do trabalhador, pois seus institutos ainda se estruturam, essencialmente, numa relação obrigacional patrimonializada (o direito do trabalho é fruto de adaptação do direito de propriedade). O direito à saúde no trabalho é um direito da esfera extrapatrimonial, embora a pessoa física represente o coração do direito do trabalho. Daí as dificuldades de se conciliar institutos e de se fixar a natureza da reparação de dano (8). No entanto, a evolução da noção de risco de acidente de trabalho e, consequentemente, da responsabilidade, remete à questão do enfrentamento da justificação ou da fundamentação, ou seja, a busca de uma resposta adequada ao problema concreto analisado. Sempre vem a questão: qual é a melhor resposta para o caso concreto? Não há uma solução simples, pois o real fundamento emerge sempre do caso concreto, mediante um juízo de adequação, que avalie todas as variáveis fáticas e normativas. Em conclusão, é indispensável pensar entre realidade concreta e realidade jurídica, pois a decisão judicial nas reparações de acidentes de trabalho se insere, em regra, na tensão entre certeza (racionalidade) e legitimidade (justiça e equidade), com vistas à construção de soluções adequadas.
É preciso que se faça permanente (re)leitura do sistema de reparação de acidentes de trabalho. Os valores constitucionais de proteção à saúde e a integridade física, com destacada vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal ou em face de terceiros), devem servir como ponto de partida para se harmonizar os princípios solidaristas veiculados pela Constituição. Nesse processo, o princípio da dignidade da pessoa humana assume uma função destacada, pois confere sentido e valor à Constituição.
NOTAS:
(1 )EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Bernard Grasset, 1986, p. 10.
(2)Idem, ibidem.
(3) Na verdade a seguridade social absorveu a legislação de reparação de dano por acidente de trabalho construída fora do direito civil e a adaptou à teoria da responsabilidade civil.
(4) O Brasil continua com o grave problema da cobertura do seguro de acidentes de trabalho. Como é destinado apenas aos empregados e segurados especiais, a sua cobertura atinge aproximadamente 27 milhões de trabalhadores, o que representa apenas 31% da PEAO. Ficam sem cobertura os trabalhadores autônomos, empresários, renda própria e os trabalhadores informais. Além disso, as prestações previdenciárias estão mais próximas do complexo assistencial-previdenciário, já que o valor da renda mensal não tem o objetivo de substituir a remuneração, mas pagar um valor pela redução ou perda da capacidade de trabalho. Por isso, a reparação civil, porque fundada no sistema de reparação integral do dano, assume papel fundamental na reparação dos acidentes de trabalho.
(5) A previsão da Constituição brasileira, contida no art. 7º, XXVIII, de que são direitos dos trabalhadores: “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”, tem suscitado diversas polêmicas na interpretação e aplicação do texto constitucional e das normas infraconstitucionais. A partir desse dispositivo se indaga sobre a real natureza da responsabilidade civil (se trabalhista ou civil), a compatibilidade e conformidade com a responsabilidade civil objetiva (art. 927, § único do Código Civil), e as possíveis repercussões do enquadramento jurídico da reparação de dano no nosso ordenamento jurídico, a exemplo da discussão em torno das regras atinentes à prescrição. O art. 7º, inciso XXVIII, deve ser lido não somente no seu sentido formal e literal, mas pelo seu conteúdo material.
(6) SILVA, Virgilio Afonso da. A constitucionalização do direito. São Paulo: Malheiros, p. 23.
(7)SILVA, Virgilio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. São Paulo: Tese de Cátedra/USP, 2005.
(8) Diz-se que a responsabilidade não é contratual porque não consta do contrato, porém decorre do contrato de trabalho, cuja obrigação de zelar pela saúde e integridade física do trabalho é ínsita. Isso é contraditório, pois o direito do trabalho historicamente se autonomizou do direito civil justamente para permitir a incidência de princípios intervencionistas e solidaristas, numa perspectiva de uma justiça particular.
(*)Advogado, professor da Faculdade de Direito da UFPR, mestre e doutor em Direito. E-mail: sidnei@machadoadvogados.com.br
(**) Texto publicado na Revista Eletrônica da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, 5ª edição, março de 2012. Para acessar o texto na revista clique aqui