As pensões securitárias e a alteração da maioridade civil
Eduardo Chamecki[1]
O benefício da pensão por morte, elevado ao status de garantia constitucional, é prestação previdenciária regulamentada em lei, cuja finalidade precípua é prover o sustento e sobrevivência dos dependentes do segurado, relegados ao desamparo diante do evento morte daquele que era o principal provedor da família. Uma das mais antigas e importantes técnicas de proteção social da pessoa humana e da família, a pensão por morte – prevista na Constituição brasileira – tem como base fundamental a solidariedade social. A contraprestação desta solidariedade se alicerça no critério de necessidade.
Vêm ganhando relevo nos tribunais as discussões acerca dos reflexos da alteração da maioridade civil – que com o advento do “Novo Código Civil” foi reduzida de 21 para 18 anos – sobre as pensões securitárias. A controvérsia diz respeito ao deferimento ou não do benefício aos dependentes que o pleiteiam na qualidade de “menores”, mas que já completaram 18 anos, bem como em relação ao cancelamento ou não, no momento em que o beneficiário completa 18 anos, dos benefícios já concedidos.
No Regime Geral da Previdência Social, considerando que a legislação de regência (Lei 8.213/91, art. 16) expressamente inclui no rol de dependentes os filhos e irmãos não emancipados “menores de 21 anos” (incisos I e III, respectivamente), não resta dúvida de que os benefícios devem ser concedidos ou mantidos até que os mesmos completem 21 anos de idade, pois a norma da legislação previdenciária especial prevalece sobre a norma da legislação civil geral. Este entendimento foi acolhido pelo próprio INSS que, ao editar a Instrução Normativa n.º 95, de 7 de outubro de 2003, em seu art. 14, assegurou a condição de dependente ao filho e ao irmão até completarem 21 anos de idade, restando induvidoso seu direito à pensão em caso de falecimento do segurado.
Em relação aos filhos e irmãos, a PARANAPREVIDÊNCIA – responsável pela gestão do Sistema de Seguridade Funcional no Estado do Paraná – tem adotado igual entendimento, pois, da mesma forma, a legislação de regência (Leis Estaduais 10.219/92 e 12.398/98), expressamente prevê a manutenção da dependência até que completem 21 anos, sobrepondo-se à redução da maioridade prevista no “Novo Código Civil”.
A controvérsia que tem motivado o chamamento do Poder Judiciário a intervir na relação entre pensionistas e Estado se dá em relação aos benefícios concedidos a menores enteados, sob guarda,[2] ou tutelados. Isto porque tanto a Lei Federal 8.213/91, quanto as Leis Estaduais 10.219/92 e 12.398/98, ao contrário do que fizeram em relação a filhos e irmãos, não consignaram expressamente que seriam dependentes enquanto fossem “menores de 21 anos”, mas tão somente enquanto fossem “menores”.
A PARANAPREVIDÊNCIA, com fulcro nesta diferenciação, tem sistematicamente cancelado as pensões dos beneficiários que a recebem na qualidade de menor sob guarda, enteados ou tutelados, no momento em que completam 18 anos. Fundamenta que, como a redação literal da lei se refere somente à menoridade, instituto de Direito Civil, não fazendo qualquer menção à idade do beneficiário, ao completar 18 anos e atingir a maioridade prevista na legislação civil vigente, perde direito ao benefício.
Esta interpretação, todavia, em relação àqueles cujo início do benefício é anterior à data da vigência do novo Código Civil, não encontra amparo no ordenamento jurídico pátrio, cabendo ao beneficiário prejudicado ingressar com ação judicial para que o dano sofrido seja reparado, buscando a anulação do ato administrativo que cancelou seu benefício.
É circunstância aceita de forma uníssona pelos Tribunais Superiores e pela doutrina especializada que os proventos de inatividade são regidos pela legislação vigente no momento em que se reúnem os requisitos legais para gozar de determinado benefício. Outro não poderia ser o entendimento, pois a aplicação de lei nova para benefícios em vigor – para os quais já se consolidaram todos os atos necessários para o seu pleno gozo – implicaria na indevida aplicação retroativa da lei, expressamente vedada pela lei civil (LICC, art. 6º).
O benefício da pensão por morte, no momento em que é adquirido em razão do falecimento do segurado, caracteriza-se como ato jurídico perfeito e, conseqüentemente, está albergado pela proteção constitucional e pela lei civil inerente ao direito adquirido.
É fato que o novo Código Civil reduziu a menoridade civil de 21 para 18 anos. Conquanto a lei tenha aplicação imediata, isso não autoriza uma interpretação inapropriada que implique em vulneração dos direitos adquiridos pela norma anterior, pois aqueles que passaram a receber o benefício de pensão por morte antes desta alteração, adquiriram, segundo a legislação vigente à época, o direito a recebê-los até que completassem 21 anos. Mesmo no que depender de aplicação subsidiária de outros diplomas legais, devem ser aplicadas as leis vigentes na época. Ou seja, os conceitos a serem extraídos da legislação civil para integrar a legislação previdenciária devem ser aqueles previstos no Código Civil vigente à época do óbito do segurado.
Na verdade, a não aplicação da lei nova para benefícios previdenciários já adquiridos é matéria já pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 359, o qual se pronunciou pela incidência irrestrita do princípio da irretroatividade: “ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou o servidor civil, reuniu os requisitos necessários, inclusive a apresentação do requerimento, quando a inatividade for voluntária”.
O art. 6.°, da LICC, dispõe que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. A Constituição Federal, com o fito de reforçar essa garantia fundamental do cidadão, estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5°, XXXVI).
Desses dois dispositivos se infere que, tendo adotado a regra do efeito imediato da lei em vigor, o nosso sistema jurídico excluiu a possibilidade de uma lei nacional (salvo casos específicos) produzir efeitos retroativos e, ainda, impôs como limites do efeito imediato o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
O conceito legal de direito adquirido se encontra no art. 6.º, § 2.º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Referido dispositivo prevê que “Consideram-se adquiridos assim os direitos que seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
Observe-se que o conceito da LICC se aproxima da lição de Gabba – citado por Limongi França – sobre direito adquirido, segundo o qual “É adquirido todo direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se viu realizado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo, e que b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o fato de onde se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”[3].
Importa destacar – pela proximidade da situação – o conceito de direito adquirido de Celso Ribeiro Bastos, para o qual “consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos previstos pela lei atualmente em vigor, ou se preferirmos, continuar-se a gozar dos efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido revogada. Portanto, o direito adquirido envolve sempre uma dimensão prospectiva, vale dizer, voltado para o futuro. Se isso trata de ato já praticado no passado, tendo aí produzido todos os seus efeitos, é ato na verdade consumado, que não coloca nenhum problema de direito adquirido. Se alguém gozou de um benefício previdenciário no passado, benefício este legal a seu tempo, e se a lei pretende retirá-lo, ela estará praticando inequivocamente uma retroação intolerável pelo direito, pois estará tentando desfazer situações mais do que adquiridas, que são as consumadas”. [4]
Conclui-se que é inconstitucional e ilegal o ato que, aplicando retroativamente preceitos de lei posterior, afronta o direito adquirido do beneficiário antes de seu termo final.
Além da ofensa a direito adquirido e a ato jurídico perfeito, e de privilegiar normas de lei geral em detrimento de lei especial, o cancelamento de benefício antes de seu termo final importa em ofensa ao princípio da contrapartida, previsto no art. 195, § 5º. da Constituição Federal, e indispensável para a segurança e solvência de qualquer regime previdenciário.
O princípio da contrapartida, objetivando resguardar o equilíbrio econômico e financeiro do sistema, impõe que, com base em ampla avaliação técnica e atuarial do sistema, haja estrita correlação entre as prestações instituídas e as fontes de custeio. Ou seja, qualquer majoração de benefício sem a indicação da respectiva fonte de custeio, bem como qualquer aumento das contribuições sem a indicação do correspondente aumento da prestação, é inconstitucional por afrontar o princípio da contrapartida.
Sobre o assunto, destaque-se o escólio de Uendel Domingues Ugatti, que aduz que: “o princípio da contrapartida é um verdadeiro axioma da seguridade social, consagrado em nosso ordenamento jurídico constitucional. Apenas admite a instituição de benefícios ou serviços de seguridade social, bem como a instituição de fontes de custeio do sistema protetivo, desde que haja correlação entra a prestação instituída e a respectiva fonte de custeio” [5].
O cancelamento do benefício antes do advento de seu termo final, em conformidade com a legislação aplicável, revela-se inconstitucional em razão da ofensa ao princípio da contrapartida, pois o segurado sempre teve sua contribuição previdenciária calculada com base em cálculos atuariais que previam o pagamento de pensão aos seus dependentes até que completassem 21 anos. Ou seja, a redução do benefício em razão do avento de lei posterior implica em desequilíbrio no binômio contribuição-prestação e, conseqüentemente, enriquecimento ilícito da PARANAPREVIDENCIA, pois as contribuições efetuadas em proporção maior aos benefícios efetivamente prestados não tiveram destinação específica. Diante desta circunstância, reforça-se a idéia do direito adquirido ao benefício vigente na data do óbito, pois esta era a contraprestação correlata às contribuições efetuadas.
Ademais, o fundamento apresentado pela PARANAPREVIDÊNCIA para o cancelamento dos benefícios, atenta, tão somente, para análise gramatical da lei. A interpretação literal, habitualmente, conduz a uma conclusão desprovida de lógica e razoabilidade. A interpretação unicamente literal – condenável pelo desprezo com as circunstâncias concretas que permeiam as lides, pela impossibilidade da linguagem gramatical reproduzir dogmas aplicáveis indistintamente a todas as hipóteses que se encontram em seu campo de incidência, pela falibilidade do legislador, e, principalmente, por não possibilitar a adequação das leis aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito – encontra-se há muito tempo superada; é assente na doutrina o entendimento de que os diversos processos de interpretação devem ser utilizados simultaneamente, pois se completam reciprocamente e seus elementos auxiliam pela maior aproximação do ideal de justiça.
Assim, a interpretação das leis deve ser sistemática, hierárquica, teleológica e, sobretudo, sociológica. O dispositivo sujeito à exegese deve ser analisado em conjunto com os demais que compõem determinada lei e com as outras normas do ordenamento jurídico, com estrita observância das superiores regras e princípios constitucionais, atentando para as finalidades pretendidas pelo legislador, e para os fins sociais que se coadunem com os interesses da coletividade e com o Estado Democrático de Direito.
Ainda que não haja um posicionamento já consolidado a respeito do assunto, a jurisprudência estadual sinaliza no sentido de acolher os argumentos acima apresentados, reconhecendo o direito dos pensionistas menores a manter seus benefícios até que completem 21 anos. As Varas da Fazenda Pública, Falências e Concordatas da Comarca de Curitiba/PR, vêm concedendo liminares para suspender o cancelamento dos benefícios. No mesmo sentido, recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná [6] confirmou, em juízo de cognição sumária, o direito a continuar recebendo o benefício de pensão a “menor sob guarda” após completar 18 anos.
Feitas estas considerações, conclui-se que o cancelamento das pensões concedidas anteriormente a vigência do novo Código Civil aos dependentes qualificados como menores sob guarda, enteados ou tutelados, no momento em que completam 18 anos, revela-se arbitrário, ilegal e inconstitucional, pois, segundo a legislação vigente à época da data de início de seus benefícios, têm direito adquirido a receber o benefício até completarem 21 anos de idade.
[1]Advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Curitiba, pós-graduando em Direito Previdenciário
[2] O menor sob guarda foi excluído do rol de dependentes do RGPS com a edição da Lei Federal 9.528/97, e do rol de dependentes do Regime Próprio dos Servidores do Estado do Paraná com a edição da Lei Estadual 12.398/98, assegurando-se, evidentemente, o direito adquirido daqueles que já recebiam o benefício de pensão por morte.
[3] FRANÇA Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed., São Paul Revista dos Tribunais, 1982, p. 204-205.
[4] BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à constituição do Brasil. São Paul Saraiva, 2.º V, 1989, p. 3.
[5] UGATTI, Uendel Domingues. O princípio constitucional da contrapartida na seguridade social. São Paul LTR, 2003. p. 84.
[6] Agravo de Instrumento. Mandado de Segurança. Liminar. Concessão para manutenção de benefício previdenciário concedido a menor sob guarda. Manutenção Recurso improvido. (TJ/PR, AI n. 151.316-4, 3ªCC, Rel. Des. Nério Spessato Ferreira, j. 06.04.2004, DJ 26.04.2004).