(Artigo) Acidentes de Trabalho: O Modelo de Reparação na Jurisprudência Trabalhista (*Sidnei Machado)

ACIDENTES DO TRABALHO: O MODELO DE REPARAÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA TRABALHISTA

O fenômeno dos acidentes de trabalho e das doenças ocupacionais, com a fixação da competência da Justiça do Trabalho (Emenda Constitucional n. 45/2004), introduziu novos conteúdos na interpretação jurisprudencial nas ações de reparação de dano.

O tema dos acidentes de trabalho, ante a sua notória complexidade, sobretudo pelas várias fontes normativas e a sensibilidade temática da questão da saúde do trabalhador, tem impulsionado a construção argumentativa pela Justiça do Trabalho em torno dos valores da dignidade humana. É uma perspectiva que leva o tema a se inscrever naquelas temáticas que desafiam pensar os direitos dentro de um quadro mais complexo do que aquele desenhado pela dogmática jurídica.

Passados mais de cinco anos da nova competência material da Justiça do Trabalho no Brasil, algumas linhas interpretativas próprias começam a ser densamente problematizadas pela jurisprudência trabalhista.

A primeira observação é da crescente pré-compreensão do acidente de trabalho no contexto das relações de trabalho, marcado pela intensificação da produtividade, da administração por projetos e por resultados e da gestão do “stress” no trabalho. As condições reais de trabalho, de crescente complexidade e precariedade, são fatores que ameaçam e degradam as condições de vida no trabalho e, portanto, são causas de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais.

A segunda percepção é de que com a nova competência material conferida à Justiça do Trabalho, a reparação civil dos acidentes de trabalho, pela sistemática da responsabilidade civil, passou a ser a nova e renovada fronteira da Justiça do Trabalho. De fato, a nova competência é fruto da onda expansionista da Justiça do Trabalho no Brasil.

Esses dois matizes envolvidos no tema da reparação do acidente de trabalho pela Justiça do Trabalho, ambas produzidas pela alteração da competência material, têm levado a um renovado interesse na reconstrução jurisprudencial em torno de temas-chave.

A ideia da nova competência, que prevaleceu para a sua assunção, foi de que era necessário dar novo contorno à velha Justiça do Trabalho para romper com o antigo paradigma herdado da Revolução Industrial para adaptá-la à nova dinâmica das forças produtivas, às novas formas de trabalho dependente, incorporando, assim, as questões contemporâneas do trabalho. No processo de Reforma do Judiciário, a Justiça do Trabalho esteve sob ameaça de extinção. A reação pela sua manutenção veio com a sua ampliação, como medida para revalorizar o seu papel histórico e institucional. Embora no curso do debate em defesa da ampliação da competência se tenham agregados argumentos em prol da eficácia da Justiça do Trabalho frente à Justiça Comum (aquela uma justiça mais célere, gratuita e dotada de um processo simplificado) que contaria com juízes vocacionados para resolver o conflito capital-trabalho; o pano de fundo foi a da necessidade mudança de paradigma. Esse foi sem dúvida o argumento de maior relevância social e política, num ato, podemos dizer quase desesperado, com a suposta iminência de erosão da atividade dessa Justiça.

Apesar das críticas que se possa fazer a essa opção política da justiça do trabalho (que abandona um paradigma sem definir o novo, promove a fragmentação da jurisdição laboral, que nos impede hoje de falar em “Justiça Especializada”), a reparação dos acidentes de trabalho está consolidada dentro do contexto da nova competência da Justiça do Trabalho. Isso nos leva à reflexão de que a Justiça do Trabalho pressupõe uma compreensão particular e atualizada da relação de trabalho, fora dos cânones do direito civil clássico. A indagação inevitável, então, é se essa nova competência terá como consequência construir uma nova prática jurisprudencial diversa daquela construída até aqui pela jurisprudência da Justiça Comum.

Apesar de alguns impasses, desacordos e incertezas em alguns temas centrais (as regras de aplicação da prescrição, por exemplo), a jurisprudência construída pela nova competência tende a promover uma adequada compreensão normativa e ética dos acidentes de trabalho.

O grande embate travado pela jurisprudência, para usarmos uma ilustração, tem sido o modelo de reparação, sobre o qual se questiona a possibilidade de adoção da responsabilidade objetiva do empregador. A jurisprudência dos juízes e tribunais do trabalho, em sua maioria, acolhem a tese de responsabilidade subjetiva dos acidentes de trabalho; mas há uma tendência crescente pela adoção da responsabilidade objetiva, esta por diversos fundamentos.

Identificamos hoje pelos menos quatro grandes interpretações em contraposição na jurisprudência:

a) Primeira, nega peremptoriamente a aplicação da responsabilidade objetiva na reparação civil do dano, utilizando como argumento a primazia da literalidade do art. 7º, XXVIII, inclusive sobre as normas infraconstitucionais;

b) Segunda, aceita a aplicação da responsabilidade objetiva apenas em atividades de risco elevado, com fundamento no parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002;

c) Terceira, aceita a adoção da responsabilidade subjetiva como regra por inexecução do contrato e admite responsabilidade objetiva pelo risco criado, argumentando, no entanto, pela prevalência da regra da teoria subjetivista;

d) Quarta, adota a responsabilidade civil objetiva do empregador pelo risco criado, risco proveito e risco profissional, com fundamento no art. 2º da CLT e na evolução doutrinária e jurisprudencial em direção à responsabilidade civil.

Essa questão tem todo o interesse prático, com grande repercussão na reparação civil dos acidentes de trabalho; todavia sua resposta está condicionada à prévia e plena delimitação e justificação do modelo teórico que adotamos.

Em linhas gerais, o fundamento de base da teoria do risco é o da prevalência da responsabilidade pelo critério do risco profissional, risco proveito ou risco criado, havendo o dever de indenizar pelo simples fato do trabalhador estar sob a dependência ou subordinaçao jurídica, portanto, sem a necessidade de provar a concorrência de culpa do empregador.

A tese da prevalência da teoria subjetivista tem como pressuposto de base o fato de já existir o modelo de responsabilidade objetiva dos acidentes de trabalho a cargo da seguridade social, através das prestações previdenciárias. E, por essa razão, não seria legítimo (e não se poderia conviver) com duas responsabilidades objetivas pelo mesmo fundamento. Embora se argumente com base na suposta primazia da Constituição (pela dicção do art. 7º, XXVIII, que numa primeira aproximação indica a responsabilidade por culpa), o que sustenta essa tese é a existência do modelo de responsabilidade objetiva da Previdência Social.

Portanto, a tese da prevalência da responsabilidade subjetiva tem seu principal argumento construído pela ausência de justificação da superposição de dois sistemas de reparação pelo mesmo critério objetivo, não especificado pelo legislador. Caso tivéssemos suprimida a obrigação constitucional de custeio do Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT) pelo empregaor, por hipotese, não se cogitaria da inviabilidade da reparaçao civil objetiva, pelos menos nas situações previstas em lei. Com isso, fica bastante saliente a centralidade desse argumento.

Desse modo, como ponto de partida, temos que admitir que a justificação coerente do modelo de reparação civil passa por uma articulação com o regime de reparação hoje a cargo da seguridade social, do qual, embora autônoma em relação ao direito à cumulação, é ainda indissociável.

Num rápido revisitar da nossa evolução normativa, verificamos que a nossa lei de infortunísta de 1919, seguindo o movimento de diversos países, nasce em reação ao regime do Código Civil, para se fixar como lei especial, pelo critério da responsabilidade pelo risco profissional. Com exceção do período que vai de 1934 a 1944, no qual a lei excluiu expressamente a cumulação com a reparação civil, sempre tivemos o concurso entre indenização do seguro privado e reparação civil. Apesar da Lei n. 5.316/67 silenciar sobre o cumulação da reparação civil, ante a supressão da previsão expressa de responsabilidade e a criação do seguro de acidentes, o STF, através da Súmula 229, de 1963, fixou entendimento de que aquela indenização não excluía a reparação civil por dolo ou culpa grave, mantendo, portanto, o critério de cumulação da reparação.

Com a Constituição de 1998, o SAT passou a fazer parte de um sistema moderno da seguridade social, mas toda a normatitização de reparação civil continuou com um pé na responsabilidade civil e outro na seguridade social. Portanto, apesar da reparação civil de acidentes de trabalho encontrar-se estruturada no corpo do código civil, ela representa mais um subsistema do direito civil, a exemplo do código de defesa do consumidor, do estatuto da criança e do adolescente, entre outros previstos em nosso ordenamento.

Conquanto construídas próximas ao direito comum, o fundamento do dever de reparação dos acidentes faz parte das normas de seguridade social, vale dizer, se estrutura em torno de seus princípios e seus valores, embora haja diferenças de objetivos entre a responsabilidade civil (que tem como meta a compensação dos danos realmente havidos) e a seguridade social (em que essa compensação pressupõe sempre que se contemple a idéia de prevenção).

Diante desse quadro cumpre indagar se há lugar para a responsabilidade civil objetiva pela teoria do risco em nosso sistema jurídico? Ou dito de outro modo, é possível compatilizar esse modelo da seguridade social com a tendência do direito à reparação de dano pela teoria do risco com o sistema de proteção social, nas hipóteses já previstas no Código de Defesa do Consumidor, a Lei Política Nacional de Proteção ao Meio Ambiente e a teoria do risco prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil?

Em verdade, a seguridade social repara os acidentes do trabalho tendo como referência o risco lícito, ou seja, o risco prévio e inevitável de eliminação pela adoção de medidas de segurança disponíveis. Ao passo que o não cumprimento das normas de prevenção da saúde e segurança pelo empregador resultam no dever de reparação pelo risco ilícito, ou seja, por ato ilícito pelo descumprimento de um dever de comportamento.

Na noção de risco lícito está implícita a noção de que nem todo risco laboral é evitável, embora se adote todas as medidas de proteção e se use da melhor técnica. Nesse sentido, há correção do texto da Constituição ao propugnar pela “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”(art. 7º, XXII).

A reponsabilide civil coberta pela seguridade social inclui, por óbvio, a responsabilidade objetiva e subjetiva. A diferença é que a Seguridade Social não ressarce a integralidade dos diversos danos, já que apenas responder por uma prestação mínima de subsistência, um mínimo existencial em razão da redução da capacidade de trabalho ou da perda da renda familiar, no caso de invalidez ou morte. Com isso, não há espaço na seguridade social para a equidade e para a reparação integral.

Disso decorre sempre a possibilidade de lançar mão da responsabilidade civil, quando estamos diante de risco lícito ou ilícito, a fim de compensar danos não cobertos pela Previdência Social. Nesse sentido, haveria compatibilidade que autorizaria o uso da teoria objetiva.

No Brasil temos larga tradição normativa e jurisprudencial pela cumulação, posição taxativamente referendada igualmente pela Constituição de 1988, em que não há impedimento para a adoção da indenização por danos por responsabilidade civil objetiva, podendo inclusive justificar a tendência jurisprudencial de acolher exclusivamente a responsabilidade objetiva nos acidentes de trabalho.

Deve-se atentar que a evolução da percepção dos acidentes de trabalho tem justificado uma harmonização entre os dois modelos de indenização, que visa conciliar socialização do risco, responsabilidade e prevenção. Não há uma contradição entre risco social e profissional e as políticas de proteção à saúde pública. Aliás, a responsabilidade pela prevenção tem o mesmo fundamento da responsabilidade pela reparação do dano. Por isso é natural que persista sempre uma tensão permanente entre socialização do risco (a cargo de seguridade social) e responsabilidade civil (a cargo do empregador).

Não há possibilidade de impedir que os avanços jurisprudenciais da responsabilidade civil por riscos seja adotados em matéria de acidentes de trabalho. Se a legislação previdenciária consolidada foi edificada para suprir o então insuficiente modelo de responsabilidade civil clássica, agora, o próximo passo é a sua nova articulação com o modelo de proteção social.

Há precedentes recentes do do TST acolhendo a teoria do risco profissional, embora não se faça rigorosa diferenciação entre as teorias do risco criado com o risco profissional(RR – 2208/2005-008-18-00 DJ – 09/05/2008 6ª Turma). No TRT da 4ª Região tem prevalecido a fundamentação em torno do “risco criado” pelo empregador para justificar a aplicação da responsabilidade objetiva. O TRT da 9ª Região inclina-se a adotar a regra da teoria subjetiva (Orientação jurisprudencial n. 47 da 3ª Turma do TRT da 9ª Região). Na I Jornada de Direito e Processo do Trabalho promovida pela ANAMATRA e TST, em novembro de 2007, foi aprovado o Enunciado acolhendo a tese da responsabilidade objetiva para atividades de risco e doenças ocupacionais com fundamento no dano ao meio ambiente.

Há, portanto, muitos fundamentos que indicam haver compatibilidade da teoria do risco com o modelo de reparação civil, desde que não se faça uma leitura isolada e literal do art. 7º, XXVIII da Constituição, e se atente para a dimensão principiológica e aberta adotada pela Constituição em matéria de direitos fundamentais, conforme expresso no art. 5º, § 2º, que textualmente assegura que os direitos e garantias positivados não excluem outros “decorrentes do regime e dos princípios adotados na Constituição”.

Para a realização do telos da dignidade da pessoa humana a jurisprudência tem um papel relevante na compreensão dos riscos dos acidentes de trabalho, na concretização do eficaz direito à reparação, precedendo, em muitas situações, à atuação legislativa.

O contrato de trabalho deve ser hoje compreendido como fazendo parte do direito das pessoas e não mais das obrigações. Essa é uma evolução que se tem denominado como repersonalização do direito civil, assumindo a feição de um direito protetor da pessoa. Por isso, quando o texto constitucional se refere à dignidade da pessoa humana se compreende tanto a liberdade, como odireito à saúde e à integridade física, incluído o meio ambiente de trabalho.

É incontornável, portanto, enfrentar nessa temática os bens fundamentais de nossa Constituição, como saúde, vida, integridade física e psíquica. Por isso, o recurso à dogmática será sempre insuficiente caso não haja na decisão uma justificação material. Isso tudo está a justificar que, para além da previsão formal dos dispositivos, impõe-se a busca do conteúdo substantivo do texto Constitucional. A maioria das temais difíceis devem ter uma justificação a partir da Constituição em seu sentido material.

É inquestionável que a garantia constitucional dos trabalhadores de “redução aos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de higiene, saúde e segurança” constitua direito humano fundamental. O conteúdo dessa garantia não é fruto apenas de subsunção, mas, sobretudo, da ponderação do direito fundamental, que tenha como norte a justiça substantiva pela incorporação do elemento axiológico.

Os desacordos jurisprudenciais ainda subsistentes, a meu ver, não se devem exclusivamente à novidade da matéria na Justiça do Trabalho, mas às dificuldades de um consenso teórico sobre o modelo de base para reparação de acidentes de trabalho em nosso ordenamento jurídico e; ainda, ao processo em construção de uma jurisprudência que contemple uma metodologia adequada e harmônica com os direitos fundamentais constitucionalizados, que ofereça respostas mais adequadas ao caso concreto.

É preciso construir valores estruturados na perspectiva de direitos fundamentais, que permitam a identificação teórica de um modelo jurídico, uma moldura segura na interpretação jurídica.

O Direito do Trabalho tem, é verdade, imensas dificuldades de promover um correto enquadramento da questão da saúde do trabalhador, pois seus institutos se fundam em essência numa relação obrigacional patrimonializada. Daí as dificuldades de se fixar a natureza da reparação de dano, o que impede a penetração dos direitos da personalidade nas relações de trabalho, dos direitos da pessoa, que são o centro epistemológico da Constituição.

Informação bibliográfica do texto:

MACHADO, Sidnei. Acidentes de Trabalho: O Modelo de Reparação na Jurisprudência Trabalhista. Informativo Jurídico SMA, Curitiba, n.º 74, 2010, disponível em http://machadoadvogados.com.br/?p=7984&preview=true, acesso em __/__/___.