Qual a previdência social que queremos?

Qual a previdência social que queremos? 

Por Sidnei Machado*

          Os desafios da anunciada Reforma da Previdência Social no governo Lula são muitos. Temos uma imensa dívida social para com os quase 12 milhões de brasileiros desempregados e os mais de 20 milhões de trabalhadores informais, todos excluídos da proteção social, sem falarmos da chaga da miséria e da pobreza. Possuem o amparo da Previdência social pouco mais de 40% da população economicamente ativa. Os demais estão excluídos, ou seja, não gozam de nenhuma proteção social do Estado.

          Mas para que servem os sistemas previdenciários? A idéia de previdência nasceu historicamente com o objetivo de propiciar a proteção do risco social, combater a miséria e a exclusão social. No Brasil, esses objetivos não se concretizaram, pois não chegamos a construir uma sociedade verdadeiramente salarial que, para esse modelo, era condição para o acesso ao sistema de previdência social.

          O debate brasileiro sobre a previdência social, pelo menos nos últimos cinco anos, foi contextualizado na ampla discussão sobre a reforma do Estado, especialmente pela ortodoxia da estabilidade monetária e da busca do equilíbrio das contas públicas. Com isso, as reformas propostas – algumas aprovadas – foram direcionadas e restritas ao combate da crise fiscal do sistema com algumas adaptações à nova expectativa de vida. Na verdade, as alternativas de enfrentamento do “problema da previdência” foram inspiradas pelas recomendações de ajuste propostas pelo Banco Mundial, embaladas pelos ventos dos modelos neoliberais dos anos 90. A receita do Banco Mundial, constante de um relatório de 1994, chamado “Envelhecimento sem crise”, preconizava um sistema de previdência social pública de proteção mínima, com equilíbrio atuarial e financeiro, deixando o resto ao mercado à previdência privada.

          O problema é que essa agenda coloca a previdência como um problema fiscal e, assim, vê as reformas apenas como necessidade de adaptação às novas exigências econômicas da economia de mercado, rompendo com os sistemas tradicionais de proteção social. A força desse discurso fez com que se ignorasse a dimensão social da seguridade para os países em desenvolvimento, que exatamente em períodos de restrições econômicas ficam impossibilitados de suportar redução na proteção social. Mas passado esse momento da “cultura da crise da previdência” e da inevitabilidade de reformas, chegou a hora de se questionar novamente qual é o papel do Estado e do setor público nos sistemas previdenciários em meio a crises e instabilidades econômicas.

          Sem dúvida a previdência contribui para o estímulo econômico, reduz a pobreza e já se revelou um eficiente mecanismo para redistribuição de renda. Nessa direção, pensamos que é possível propugnar por um sistema de previdência de proteção e inclusão social que combata os efeitos dos desajustes do nosso restrito mercado de trabalho, da informalidade e da miséria.

          A reestruturação da previdência social deve ser construída a partir de três grandes eixos, apresentados por nós também como grandes desafios: a) previdência social púbica; b) unificação do setor público e privado; c) universalização do acesso aos benefícios previdenciários.

          Estudos recentes da Associação Internacional de Seguridade Social – AISS têm indicado que são exacerbadas as críticas à viabilidade fiscal dos sistemas de repartição pública, desfazendo vários mitos propagados em relação a esse sistema. Por isso, é preciso reafirmar o sistema público como pilar básico e obrigatório, financiado por toda a sociedade, que contemple benefícios mínimos e máximos, com patamares capazes de garantir a manutenção da renda em situações de desemprego, doença, invalidez, acidente de trabalho e aposentadoria, quando em idade avançada. Somente a construção de um sistema público universal e obrigatório é capaz de garantir a proteção social daqueles que trabalham e de seus familiares. A segurança de renda propicia bem-estar às pessoas e à família, além de contribuir no funcionamento da economia, pois garante o acesso ao consumo.

          O sistema público deve ampliar também a proteção para os novos riscos sociais e revalorizar antigos benefícios. O seguro-desemprego, por exemplo, deve passar a proteger o trabalhador do desemprego de longa duração, que é uma realidade nova. A perda do emprego do trabalhador por volta dos 40 anos o coloca numa situação dramática, pois o mercado de trabalho o reputa velho para trabalhar, mas para a previdência social ele é ainda muito jovem para se aposentar. A assistência à saúde também deve passar a ser considerada um benefício previdenciário e não apenas um “mercado da saúde”, de acesso restrito às camadas da população em condições de pagar um plano privado.

          O segundo pilar é o da unificação dos sistemas público e privado, hoje divididos em sistemas próprios para os servidores públicos da União, Estados e Municípios e, para os trabalhadores do setor privado, o Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Somente a unificação dos regimes em um único sistema público, com tratamento isonômico e eqüitativo em relação ao financiamento e benefícios, sem privilégios, pode despertar a sociedade para o debate com vistas à construção de um modelo sólido de previdência.

          Finalmente, a universalização do acesso à previdência é uma exigência social que propicia a inclusão da imensa maioria de trabalhadores informais, autônomos e pequenos empresários. A contribuição social de 20% para os trabalhadores autônomos, atualmente previsto na legislação, contra os 9 a 11% cobrados do trabalhador formal, é sem dúvida é um dos fatores que inibem a inscrição desses trabalhadores no sistema. É preciso fazer urgentemente uma redução significativa nesse percentual, para não ficarmos num circulo vicioso, em que o trabalhador não tem renda suficiente para poder pagar a previdência e, quando necessita de proteção social, uma vez desempregado ou no mercado de trabalho informal, o seu último refúgio é um programa governamental de ajuda mínima do tipo “comunidade solidária”.

          É claro que nesse novo sistema poderá haver pequenos ajustes em alguns benefícios e nas contribuições, o que demandará um período de transição, para que não se provoque rupturas abruptas no sistema que violem de direitos da atual geração de trabalhadores. Quando falamos em reformas devemos sempre ter presente que qualquer mudança deve contemplar as expectativas legítimas de uma geração inteira para que a futura geração não seja penalizada, já que a previdência é um sistema de seguro social que pressupõe um pacto de entre gerações, onde uma trabalhara para sustentar aquela que lhe precedeu e assim sucessivamente. Para a melhoria do financiamento temos ainda os recursos de combate à sonegação e à fraude, os quais atualmente são estimuladas pelas leis que autorizam os parcelamentos das dívidas, a juros módicos, inferiores aos praticados pelas instituições financeiras.

          Manter o sistema, ampliar a redução da proteção para os novos riscos, para além dos benefícios previdenciários, evidentemente pressupõe maiores recursos, que devem ser gerados pelo crescimento econômico que crie mais empregos, mais renda. Além disso, deve-se introduzir uma reforma fiscal que contemple o fortalecimento do seguro social no país.

          Então a previdência social que queremos para nossa sociedade passa pela reconstrução do bem-estar, construindo novos modelos capazes de atender as exigências modernas da instabilidade do mercado de trabalho e da economia de mercado, que concretize o direito à previdência, que é norma e projeto da nossa Constituição. A partir desses princípios devemos aprofundar o debate público sobre a responsabilidade do Estado brasileiro na construção de um novo compromisso com o bem-estar.

* Sidnei Machado é advogado, mestre, doutor em Direito e professor de Direito Previdenciário.