Se aprovada, a reforma deve atingir os mais ricos

Se aprovada, a reforma deve atingir os mais ricos

         De 176 milhões de brasileiros, não mais que 2%, ou 3,5 milhões, serão afetados pela contribuição dos inativos do setor público, caso a proposta de reforma da Previdência do presidente Lula seja aprovada pelo Congresso. Daquele grupo de 2% dos brasileiros, mais de 90% estão entre os 20% mais ricos do país, e mais de 70% estão entre os 10% mais ricos. Estes números são uma estimativa baseada em dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) de 2001, e do Anuário Estatístico da Previdência Social do mesmo ano. Eles referem-se aos aposentados e pensionistas do setor público, que ganham acima de R$ 1.058,00 mais os seus familiares.

         Os inativos do setor público são um dos grupos mais bem defendidos pelo Legislativo brasileiro. Como vem ocorrendo desde a reforma da Previdência de Fernando Henrique Cardoso, a contribuição dos inativos está novamente dominando o debate, mesmo não atingindo 98% dos brasileiros, e praticamente sem afetar os 80% mais pobres.

         O Ministério da Previdência não dispõe oficialmente de dados sobre quanto renderia a contribuição dos inativos na proposta de Lula. Há estimativas de que possa render R$ 900 milhões anuais no Poder Executivo federal. Quanto aos demais Poderes, Estados e municípios, não há dados confiáveis.


Segmento protegido por todas as tendências

         Os inativos do setor público são protegidos por todas as tendências políticas, com especial ênfase na esquerda. O PC do B vem se manifestando contra a medida e, no passado, o PT foi um dos seus maiores adversários. O senador Paulo Paim (PT-RS), que vem resistindo à taxação dos inativos tal como está na reforma enviada por Lula, diz que “quem ganha R$ 1.500,00 está na faixa do salário mínimo calculado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese). E ninguém me diz que é rico, pois está na linha dos que passam fome.”

         Alguns cientistas políticos, porém, não vêem a ligação entre a contribuição dos inativos e a questão da fome, mencionada por Paim. Para Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas do Rio, a intensidade da resistência à contribuição dos inativos, por parte da esquerda e dos políticos em geral, mostra que “o processo decisório brasileiro permite que minorias recebam privilégios à custa da maioria”. Amorim Neto observa que os inativos do setor público são um grupo muito bem organizado, e com muita capacidade de pressão sobre o Legislativo e o Executivo. “Eles podem inclusive fazer chantagem, com greves que paralisam o Governo”, afirma. Enquanto isso, continua o cientista político, a maioria dos despossuídos brasileiros é desorganizada: “Nunca se viu gente que recebe metade de um salário mínimo (R$ 120,00) fazendo passeata.” Outro problema, para ele, é que “os juízes, que interpretam as leis, são parte interessada, e não querem reduzir as aposentadorias e os tetos.”

         Para Fernando Abrúcio, cientista político da PUC-SP e da FGV-SP, “alguns grupos têm maior capacidade de focalizar e articular suas demandas, e entre eles estão os funcionários públicos”. Ele observa que “o popular hoje no Brasil não é o barnabé (funcionário público de baixo escalão), mas sim o cara da Cidade de Deus (conjunto habitacional de baixa renda no Rio)”. O cientista político vê a proximidade da esquerda com os funcionários públicos como sendo derivada, em parte, de uma perspectiva progressista que representantes deste grupo tiveram historicamente. O problema, porém, é que aquela proximidade acabou adicionando um aspecto de “mera defesa de privilégios corporativos”. 

         Tanto Amorim Neto quanto Abrúcio acham que o caminho para a aprovação da reforma da Previdência Social, proposta pelo presidente Lula, é vinculá-la fortemente à questão de justiça social. Abrúcio acha que um escalonamento das contribuições pelo tamanho das aposentadorias ajudaria o governo a aprovar a medida. Ele sugere, por exemplo, 8% entre R$ 1.058,00 e R$ 2.411,00 (novo teto da Previdência proposto na reforma), e alíquotas progressivamente maiores para quem recebe mais. Para ele, aposentados do setor público que recebem mais do que o presidente da República deveriam contribuir com 15% a 20%. 

         Os números mencionados nesta matéria foram estimados a partir da Pnad 2001 e do Anuário Estatístico da Previdência Social do mesmo ano, com a ajuda do economista André Urani, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). Urani utilizou o limite de isenção do Imposto de Renda de 2001, de R$ 900,00 já que este mesmo teto – hoje em R$ 1.058,00 – foi usado para fixar a isenção da contribuição de inativos e pensionistas na proposta de reforma de Lula.

         A estimativa levou em consideração a família média de 32 pessoas de todos os inativos e pensionistas (incluindo do setor privado) ganhando mais de R$ 900,00 em 2001. O número de inativos e pensionistas do setor público naquela faixa em 2001 foi de 1,04 milhão. Incluindo os familiares, chegou-se a um número de 3,3 milhões de pessoas, arredondado para 3,5 milhões como margem de segurança.

         A posição na distribuição de renda também foi tirada da Pnad, considerando-se o conjunto total dos inativos e pensionistas ganhando mais de R$ 900,00 em 2001. Uma parcela de 71,8% estão em famílias na faixa das 10% mais ricas do Brasil, e 91,4% estão entre os 20% mais ricos. Um total de 99,4% estão entre os 40% mais ricos, e 100% estão na metade mais rica da população.

O poderoso e ruidoso lobby dos servidores 

         O empenho dos políticos contra a contribuição dos inativos – da esquerda à direita – levou a medida a ser rejeitada diversas vezes, ao longo da década de 90. Quando o Legislativo foi vencido pela pressão do Executivo, o Judiciário virou o jogo de volta em favor dos inativos. Segundo levantamento do Instituto Movimento dos Servidores Aposentados e Pensionistas (Mosap), foram nove tentativas desde o emendão do Governo Collor, em 1991. O próprio Legislativo encarregou-se de enterrá-las, e os inativos tiveram a ajuda do STF na última batalha, em 1999 – isto é, antes de o PT, um dos principais adversários históricos da cobrança dos inativos, relançar o tema na sua reforma da Previdência recém-enviada ao Congresso.

         A cobrança dos inativos, na prática, significa que estes passarão a receber o último salário da ativa. Como a aposentadoria é integral, e o inativo deixa de descontar 11%, ele tem um aumento deste porcentual quando se aposenta. Os sistemas de aposentadoria pública mais generosos do mundo, em países ricos, pagam aposentadorias que não costumam superar 80% do último salário da ativa.

         Os defensores da cobrança dos inativos costumam observar que o rombo de R$ 53,8 bilhões (2002) nas aposentadorias e pensões do setor público deve-se em boa parte a um histórico de contribuições insuficientes (ou inexistentes) que vem desde a Constituição de 1988 e da subseqüente legislação do Regime Jurídico Único dos servidores públicos. É um ônus, portanto, que deveria recair sobre todo o conjunto dos ativos e inativos do setor público. Hoje, este rombo é financiado com recursos tributários ordinários, reduzindo o espaço no orçamento para investimentos públicos e programas sociais. A contribuição dos inativos não fecha, nem de longe, aquele buraco, mas seria uma contribuição vinda justamente de quem o causa.

         Em 1999, na esteira do colapso financeiro e cambial, Fernando Henrique Cardoso conseguiu arrancar do Congresso a contribuição dos inativos e o aumento do desconto dos ativos. No mesmo ano, porém, o STF decidiu que a medida era inconstitucional.

(FONTE: Jornal do Commercio)