Desoneração da folha de salários e inclusão previdenciária

Desoneração da folha de salários e inclusão previdenciária                                                    

                                                                                        Sidnei Machado ([1])

Nas últimas duas décadas cresceu no Brasil o debate sobre o custo do trabalho. O argumento recorrente é de que os encargos diretos e indiretos da contratação formal da mão-de-obra são fatores inibidores de uma maior competitividade numa economia aberta. E a associação direta que se faz é com as excessivas alíquotas das contribuições previdenciárias devidas à seguridade social, cuja base de cálculo é a folha de salários das empresas.  Daí as propostas com vistas à redução dos custos do trabalho, que levam ao tencionamento por mudanças no arcabouço jurídico trabalhista e previdenciário.

Mas um atento olhar para os grandes números da Previdência Social revela a sua imensa dimensão social no Brasil.Em 2004, a Previdência Social pagou 22,7 milhões de benefícios, com valor médio de R$433,86, atingindo um gasto de R$ 150,6 bilhões, equivalente a 7,1% do PIB. Isso beneficiou direta e indiretamente cerca de 70 milhões de pessoas. É indiscutível que a Previdência Social é um dos mais importantes fatores de estabilidade do país, porque é em boa medida responsável pela coesão social. Estudos indicam que sistemas previdenciários bem desenhados podem ser fatores que aumentam a competitividade, de tal sorte que a Previdência Social também deve ser encarada como um fator de produção.

Essa problemática se revela maior ainda quando se constata que a enorme crise de financiamento da Previdência Social brasileira é explicada, em grande parte, pela baixa cobertura do sistema, agravada na última década pelas grandes mudanças no mercado de trabalho, especialmente com o aumento do emprego informal e precário em suas diversas formas, em detrimento do contrato padrão de emprego. No Brasil, segundo dados do Ministério da Previdência, para cada dez trabalhadores ocupados, quatro não possuem direitos previdenciários ou outra forma de proteção social. Assim, temos 27 milhões de trabalhadores que, embora ocupados, estão socialmente desprotegidos.  Destes 16,9 milhões possuem renda igual ou superior a um salário mínimo e, conseqüentemente, poderiam ser incorporados ao sistema previdenciário contributivo, a partir de políticas de inclusão previdenciária. Os outros 9,8 milhões de trabalhadores têm renda mensal inferior ao salário mínimo e, por esse motivo, são alvo das políticas de combate da pobreza.

É emblemático também o fato de que a fragilização do contrato de trabalho formal e a redução da proteção previdenciária – especialmente por meio dos ataques às aposentadorias -, ao mesmo tempo em que geram insegurança generalizada no mercado de trabalho, produzem tensão com a regulação jurídica, sobretudo com a Constituição e o Estado de Direito. Não podemos esquecer que o nosso modelo é de uma cidadania regulada, onde o acesso aos direitos de cidadania se dá essencialmente pelo contrato de trabalho. Isso revela o grande desafio que temos de construir um novo consenso em torno de políticas sociais, que preservem a cidadania regulada pela Constituição e, ao mesmo tempo, sejam fatores que não prejudiquem o desenvolvimento econômico. Nesse complexo contexto econômico e social, as exigências legítimas do setor produtivo para dinamizar a produção devem ser conciliadas com a promoção da inclusão previdenciária, que também supere a crise de financiamento do sistema.

Duas iniciativas importantes surgiram no bojo das reformas da Constituição que, acreditamos, sinalizam para um primeiro enfrentamento desses desafios. Em 1998, a Emenda Constitucional n. 20/98 (conhecida como Reforma Previdenciária), ao alterar o inciso I do art. 195 da Constituição, permitiu que as contribuições previdenciárias incidam também sobre o faturamento, receita ou lucro; e não mais exclusivamente sobre a folha de salários. Em 2003, a Emenda Constitucional n. 47/03, deu um passo mais adiante nessa iniciativa. Ao acrescentar o parágrafo 9º ao art. 195 da Constituição, possibilitou que as contribuições sociais possam ter “alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho”. A segunda mudança sobreveio com a Emenda Constitucional n. 47/03 que introduziu o “sistema especial de inclusão previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário-mínimo”.

As duas mudanças no texto constitucional, uma vez regulamentadas em lei, podem desonerar a folha de salários e estimular a formalização dos contratos de trabalho. Na outra ponta, a inclusão previdenciária tende a forçar a universalização do sistema dentro do Regime Geral de Previdência Social, medida que beneficiará as donas de casa de famílias de até dois salários mínimos e os que estão por algum motivo fora do mercado de trabalho. Essas duas estratégias, se bem articuladas e estruturadas na legislação ordinária, indiscutivelmente abrirão caminho para a construção do novo e duradouro consenso em torno da Previdência Social.

[1]Advogado, doutor em direito e professor de direito do trabalho e previdenciário do UnicenP. E-mail: sidnei@machadoadvogados.com.br