Desaposentação

                                                                             Sidnei Machado

O direito do aposentado a renunciar a aposentadoria para requer novo benefício, mais vantajoso, passou a ser aceito pela jurisprudência do STJ. A questão ainda polêmica é se, em decorrência da desaposentação, há obrigação de devolução dos valores já recebidos.

Há duas situações muito comuns em que a renúncia é vantajosa: a) quando o aposentado renuncia ao tempo da aposentadoria para contagem recíproca do tempo de serviço em outro regime previdenciário para qual continua a contribuir; b) quando o aposentado que continuou trabalhando depois da aposentadoria pretende contemplar o tempo posterior contribuído, o que pode, em geral, proporcionar benefício de maior valor.

Mas para saber os efeitos do ato de desaposentação é necessário identificar qual é a natureza jurídica da renúncia.

A aposentadoria não é irreversível, como prevê o art. 181-B do Decreto n. 3.048/99. É um direito do aposentado, de caráter patrimonial, dispor de sua aposentadoria (renunciar) para obter direito mais vantajoso.

Como se vê, não se trata de mera renúncia à aposentadoria, mais em um ato de opção por outra aposentadoria de maior valor, para a qual também preenche os requisitos legais.

Para o primeiro caso, de contagem recíproca em outro regime previdenciário (público ou privado), há previsão constitucional do direito à averbação do tempo em outro regime (CF/88, art. 201, § 9º).

Ocorre que, com a emissão da Certidão de Tempo de Contribuição (CTC) de um regime para outro, há disposição legal que autoriza a compensação financeira entre os dois regimes previdenciários (Lei n. 9.711/98). Portanto, na contagem recíproca há compensação do tempo decorrente da renúncia à aposentadoria.

A pergunta é se mesmo com compensação financeira haveria a necessidade de devolução dos valores recebidos na antiga aposentadoria. A resposta, no nosso entendimento, é negativa.

A compensação financeira, pelos procedimentos previstos na lei, tem justamente a finalidade de “compensar” a mudança de tempo entre dois regimes. Bem ou mal, certo ou errado, foi o critério eleito pela lei para o ajuste de contas entre os regimes previdenciários. Assim, não se pode falar em prejuízo financeiro, visto que compensado.

Note-se que na desaposentação a manifestação de vontade para que cesse o recebimento do benefício implica na imediata renúncia aos efeitos patrimoniais futuros. Não se tornam nulas, entretanto, as prestações anteriormente recebidas, pois recebidas regularmente, quando o segurado preenchia todos os requisitos para o gozo da aposentadoria.

Assim, ao reconhecer o direito à desaposentação, a decisão judicial profere sentença de natureza desconstitutiva, cujos efeitos jurídicos são futuros (ex nunc). Em hipótese alguma há efeitos retroativos dessa decisão.

Em definitivo, não se pode equiparar a desaposentação com a hipótese do benefício mantido em fraude ou com irregularidade, situação em que, de fato, o pagamento foi indevido desde o início. Nesse caso, se opera o cancelamento do benefício, com anulação do benefício, o que tem, como conseqüência, efeitos retroativos (ex tunc), impondo-se, desse modo, à devolução dos valores indevidamente recebidos.

Há outra questão prática muito relevante. Se a contagem recíproca é garantia constitucional, condicionar o seu exercício à restituição de valores da aposentadoria recebida, em muitas situações, diante do montante a ser devolvido, implica na impossibilidade do exercício do direito, pois, tornando onerosa a condição, impede e inviabiliza o acesso ao direito.

Ademais, os benefícios previdenciários em geral − dada sua natureza de verba substitutiva da renda advinda do trabalho para o trabalhador em potencial condição de afetado por risco social – têm natureza alimentar. O caráter alimentar da prestação e, ainda, a boa-fé do segurado, também impossibilitam a irrepetibilidade dos valores recebidos.

Há substantiva jurisprudência, que adota alguns dos argumentos que mencionamos, que não reconhece a obrigação de devolução de valores. Veja-se, por exemplo, decisões do STJ e do TRF da 4ª Região :

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. (…) PREVIDENCIÁRIO. RENÚNCIA À APOSENTADORIA. DEVOLUÇÃO DE VALORES. DESNECESSIDADE. DECISÃO MANTIDA. (…)
2. No caso concreto, o provimento atacado foi proferido em sintonia com o entendimento de ambas as Turmas componentes da Terceira Seção, segundo o qual, a renúncia à aposentadoria, para fins de aproveitamento do tempo de contribuição e concessão de novo benefício, seja no mesmo regime ou em regime diverso, não importa em devolução dos valores percebidos, “pois enquanto perdurou a aposentadoria pelo regime geral, os pagamentos, de natureza alimentar, eram indiscutivelmente devidos” (REsp 692.628/DF, DJe 08/09/2008 – grifo nosso).

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA NO REGIME GERAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. DIREITO DE RENÚNCIA. CABIMENTO. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO PARA NOVA APOSENTADORIA EM REGIME DIVERSO. EFEITOS EX NUNC. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES. CONTAGEM RECÍPROCA. COMPENSAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO DA AUTARQUIA.
1. É firme a compreensão desta Corte de que a aposentadoria, direito patrimonial disponível, pode ser objeto de renúncia, revelando-se possível, nesses casos, a contagem do respectivo tempo de serviço para a obtenção de nova aposentadoria, ainda que por outro regime de previdência.
2. Com efeito, havendo a renúncia da aposentadoria, inexistirá a vedação legal do inciso III do art. 96 da Lei nº 8.213/1991, segundo o qual “não será contado por um sistema o tempo de serviço utilizado para concessão de aposentadoria pelo outro”, uma vez que o benefício anterior deixará de existir no mundo jurídico, liberando o tempo de serviço ou de contribuição para ser contado em novo benefício.
3. No ponto da renúncia, ressalto que a matéria está preclusa, dado que a autarquia deixou de recorrer. O cerne da controvérsia está na obrigatoriedade, ou não, da restituição dos valores recebidos em virtude do benefício que se busca renunciar.
4. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o ato de renunciar ao benefício tem efeitos ex nunc e não envolve a obrigação de devolução das parcelas recebidas, pois, enquanto aposentado, o segurado fez jus aos proventos.
5. Abase de cálculo da compensação, segundo a norma do § 3º da Lei nº 9.796/1999, será o valor do benefício pago pelo regime instituidor ou a renda mensal do benefício segundo as regras da Previdência Social, o que for menor.
6. Apurado o valor-base, a compensação equivalerá à multiplicação desse valor pelo percentual do tempo de contribuição ao Regime Geral utilizado no tempo de serviço total do servidor público, que dará origem à nova aposentadoria.
7. Se antes da renúncia o INSS era responsável pela manutenção do benefício de aposentadoria, cujo valor à época do ajuizamento da demanda era R$ 316,34, após, a sua responsabilidade limitar-se-á à compensação com base no percentual obtido do tempo de serviço no RGPS utilizado na contagem recíproca, por certo, em um valor inferior, inexistindo qualquer prejuízo para a autarquia.(…). (REsp 557.231/RS, DJe 16/06/2008 – grifo nosso).

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA. RENÚNCIA. EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE SERVIÇO. CONTAGEM RECÍPROCA. DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS RECEBIDAS. 1.(…) 2. A renúncia da aposentadoria não atinge o tempo de contribuição, de modo que viável seu aproveitamento em outro regime previdenciário. 3. No caso de renúncia da aposentadoria junto ao RGPS para aproveitamento no regime estatutário não há necessidade de devolução dos valores recebidos (AR 200204010280671. Rel. p/ acórdão Des. Nylson Paim de Abreu. 3ª Seção do TRF4). (TRF4, REOMS 2007.71.00.036884-1, D.E. 25/07/2008 – grifo nosso).

Mas nem todos esses argumentos enumerados são válidos para as situações de desaposentação, com o objetivo de se obter nova aposentadoria no mesmo regime previdenciário. A situação típica é do trabalhador que, aposentado com 30 anos de contribuição (70%), em razão de continuar contribuindo, pretende substituir a aposentadoria por outra com 35 anos de contribuição (100%).

Para a desconstituição e implantação de nova aposentadoria no mesmo regime não há a compensação previdenciária. Por outro lado, não há consistente argumento que imponha a simples devolução dos valores, como tem entendido a Previdência Social, o que penalizaria o segurado e, em muitos casos, inviabilizaria o direito à renuncia.

A devolução integral implicaria em conferir à aposentadoria original, como afirmamos, os mesmos efeitos de aposentadoria indevida.

A jurisprudência não é uniforme quanto a obrigatoriedade da devolução dos valores. A solução ideal seria uma normatização a respeito.

A partir dos princípios contribuitivos que orientam o nosso sistema de seguridade social, parece razoável mesmo que haja algum ajuste financeiro entre a Previdência e o segurado, com vistas a recompor o equilíbrio financeiro, algo semelhante aos procedimentos realizados por cálculos atuariais no sistema privado de previdência. É a solução eqüitativa e proporcional.

Porém, há um problema de ordem prática. Em não havendo lei disciplinando esse procedimento e dada a sua complexidade técnica e atuarial de difícil justificação e motivação, não pode o juiz criar arbitrariamente a regra, mesmo para o caso concreto. A solução, então, enquanto inexistente regulamentação, não pode ser outra senão a de não reconhecer a legalidade da obrigação de devolução pretendida pela Previdência Social.

Sidnei Machado Advogados Associados, Curitiba, 05 de novembro de 2008