A morte (anunciada) por excesso de trabalho e os limites para a prorrogação da jornada de trabalho

 

A morte (anunciada) por excesso de trabalho e os limites para a prorrogação da jornada de trabalho

                                                               Christian Marcello Mañas (*)

Houve um acidente de trabalho. Houve uma morte. A vítima era um trabalhador que, forçado a cumprir jornada muito superior à contratual, sucumbiu à fadiga e à exaustão.

A notícia, oriunda do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, não fosse trágica, certamente viria a ser mais um capítulo da crônica de Gabriel Garcia Márquez. O enredo é semelhante: a empresa, a sociedade civil e o Estado já sabiam o que iria acontecer com o trabalhador. Era questão de tempo. Nada o salvaria do destino trágico.

No contrato de trabalho, a realização de horas extras é uma exceção prevista em lei (CF, art. 7.º, XIII; CLT, art. 58 a 61). Mas a prática reiterada das empresas em exigir o trabalho extraordinário para aumentar a produção e o lucro é um grave fator de risco, determinante à ocorrência de acidentes de trabalho.

Na relação de emprego, quando está presente o elemento diferenciado da subordinação, não se pode olvidar que toda estrutura que está montada para a produção – desde o simples mobiliário até o maquinário, além da organização da cadeia produtiva – não é de escolha do empregado, mas da empresa. Portanto, todos os fatores que dão ensejo aos acidentes de trabalho estão atrelados a variáveis de risco assumido pela empresa, cuja exigência, quanto à política de saúde e segurança dos empregados, deve ser absolutamente rigorosa, sob pena de macular a construção histórica (e tardia) desses direitos fundamentais.

Havendo a caracterização do acidente e o nexo causal com o trabalho realizado, a responsabilidade da empresa é decorrente, pois ela assume os riscos da atividade econômica, não apenas os riscos financeiros, mas os riscos sociais, tais como as doenças ocupacionais e os acidentes de trabalho, em face do descumprimento de medidas legais pela empresa ou mesmo na ineficácia de fiscalização do cumprimento de normas (internas ou não) pelo empregado.

No presente caso não houve tempo para salvar a vida do trabalhador. Por ocasião de sua morte, a empresa foi autuada por fiscais da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), resultando em ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho. A ação foi julgada procedente em primeira instância e foi mantida pela 1ª Turma do TRT-MG, sendo determinada a limitação da jornada de trabalho dos empregados a 08 horas diárias e 44 semanais, apenas admitindo-se a realização de horas extras legais (CLT, art. 59 e 61).

A empresa foi condenada ainda a conceder repouso semanal de, no mínimo, 24 horas consecutivas (CLT, art. 67), com intervalo de 11 horas entre duas jornadas, além de intervalo para refeição e repouso (CLT, art. 71).

O desrespeito aos limites legais da jornada de trabalho já vinha sendo constatada ao longo dos últimos cinco anos, mas foi a  resistência da empresa em implementar as medidas de caráter preventivo que levaram o Ministério Público ao ajuizamento da ação civil pública (RO nº 00648-2006-028-03-00-9). Para o TRT, uma vez configurado o ato ilícito, basta a probabilidade de sua repetição para que seja cabível a tutela jurisdicional inibitória (proibição do ato ou omissão que possa vir a provocar o dano), com caráter pedagógico e preventivo.

Dentre as causas do acidente de trabalho com morte, apontadas pela fiscalização realizada pela Seção de Segurança e Saúde do Trabalho da DRT, identificou-se o excesso de jornada, a realização de horas extras diárias e habituais e a falta de descanso semanal remunerado. Em parecer técnico realizado nos controles de jornada juntados, somado aos relatórios da fiscalização, foi constatado que a empresa prorrogava a jornada de trabalho de seus empregados além do limite de duas horas diárias, sem justificativa legal (CLT, art. 59); deixava de conceder-lhes o descanso semanal, havendo casos de trabalho em até 23 dias seguidos, sem ocorrência da folga de 24 horas consecutivas (CLT, art. 67); não concedia o descanso mínimo de 11 horas entre uma jornada e outra (CLT, art. 66), além de reduzir o intervalo intrajornada mínimo de 01 hora.

Comprovou-se também que a empresa sequer demonstrou a ocorrência de necessidade imperiosa que justificasse a prorrogação da jornada (CLT, art. 61). Ao contrário, a empresa limitou-se a afirmar que isso ocorria em função de cursos de reciclagem. Ficou demonstrado ainda que a empresa deixou de comunicar o excesso de trabalho no prazo de 10 (dez) dias à autoridade competente (CLT, art. 61, § 1.º).

Infelizmente a gravidade da situação atingiu o limite com a morte do empregado, que fazia horas extras acima do permitido legalmente, raramente usufruindo do repouso semanal. Além disso, o próprio relatório feito pela empresa, após o acidente, apontou que o empregado trabalhava sem uso de EPIs, sem treinamento e que seu ambiente de trabalho não tinha placas de sinalização. Esses fatos caracterizam o descaso da empresa com a saúde e segurança de seus empregados, que ainda se recusou a firmar o Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta proposto pelo MPT. O TRT ainda considerou inválidas as normas coletivas que permitiram a “dobra de jornada” dos empregados (mesma situação que ocorre com os petroleiros), bem como a previsão de horas extraordinárias além do legalmente previsto, pois são direitos indisponíveis e irrenunciáveis.

No Brasil é lamentável que o sistema de capital ainda facilite às empresas a exigência de serviço suplementar pelos trabalhadores. Obviamente que a remuneração adicional estimula os trabalhadores que, geralmente mal remunerados, aceitam a sobrejornada habitual na perspectiva de aumento da renda mensal. Trata-se de uma simples troca do desgaste pela compensação pecuniária, implicando num círculo vicioso de banalização do sistema de horas extras, com a venda do tempo livre ao empregador (1).

Essa regra de compensação logicamente acaba por negar a existência de uma limitação legal da jornada de trabalho. Segundo Dal Rosso é a “realidade nua e crua do trabalho extraordinário (…) Horas extraordinárias ‘pegadas’ ou ‘viradas’ para a execução de serviços urgentes, empreitadas e um regular acréscimo de tempo de trabalho no dia-a-dia são as manifestações mais freqüentes” (2). Da mesma forma, Arion Romita bem sintetiza a banalização das horas extras no Brasil: “os baixos salários correspondentes à jornada normal são reforçados pela paga advinda das horas suplementares. (…) As elucubrações dos teóricos (necessidade de repouso, acesso ao lazer, prevenção dos acidentes, combate à fadiga, etc.) cedem diante da realidade econômica: é preciso que os trabalhadores ganhem mais. Os empregadores, docemente constrangidos, aderem: os custos da produção se reduzem, já que não precisam admitir novos empregados.” (3)

Talvez a sociedade não tenha refletido sobre a real dimensão do problema : a efetiva corrosão da jornada de trabalho clássica, um dos pilares de sustentação do direito do trabalho. O que era para ser exceção, virou regra. Inverteu-se a lógica do sistema, com a difusão da jornada, aliada a outros fatores de saúde e segurança. Mas o capital ruge. E fala mais alto.

(*) Advogado. Mestre em Direito do Trabalho (UFPR). E-mail: christian@machadoadvogados.com.br

(1) Essa temática está presente em nossa contribuição, no livro “Tempo e trabalho : a tutela jurídica do tempo de trabalho e tempo livre” (São Paulo :  LTr Editora, 2005)

(2) DAL ROSSO, Sadi. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. São Paulo : LTr Editora, 1996, p.208.

(3 )ROMITA, Arion Sayão. Horas extraordinárias: base diária ou anual? Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, n. 84, p.3-18, dez., 1993.