A função social do contrato e o portador de doença incurável

A função social do contrato e o portador de doença incurável 
                                                             Christian Marcello Mañas *

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) recentemente apresentou o Segundo Relatório Global sobre a discriminação no trabalho intitulado “igualdade no trabalh enfrentando os desafios”, o qual retrata o panorama mundial de contrastes entre progressos e fracassos.

Se de um lado há o crescimento de políticas de combate, por outro lado, surgem novas modalidades de discriminação. De fato, além das modalidades tradicionais (cor, sexo, religião), há outras reconhecidas atualmente, como a discriminação por idade, orientação sexual, portadores de HIV, obesos, tabagistas e outros.

Nesse paradoxo, a justiça do trabalho tem um papel central de zelar pelo fiel cumprimento da legislação que veda todas as formas de discriminação. E a jurisprudência conduzida pelo TST tem contribuído para aperfeiçoar o entendimento sobre o tema. Recente decisão da instância superior (E-RR- 409/2003-004-02-00.1) manteve o posicionamento do TRT-SP, que determinou a reintegração de portador de HIV com base na função social da empresa e do contrato de trabalho (CC, art. 421), independentemente da prova do ato discriminatório na dispensa, seguindo os princípios presentes na Constituição Federal.

A situação emblemática do portador de HIV, bem como dos demais portadores de moléstias fatais, induzem à tutela especial, pois há necessidade de proteger o bem maior: o direito à vida (CF, art. 5.º, caput) em reconhecimento à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, II e IV). Além disso, a dispensa de empregado acometido de estado mórbido, sobretudo sabendo da dificuldade de encontrar novo emprego e de comprar remédios para a manutenção da saúde, é fazer letra morta do art. 6.º, da Constituição Federal, que elenca – dentre os direitos – o direito ao trabalho.

O direito ao trabalho deve ser resguardado sempre que estiver em jogo o direito à vida. E nesse aspecto, destacam-se os Enunciados n. 22 e 23 aprovados por ocasião da Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “Enunciado 22. A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”; “Enunciado 23. A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses meta-individuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.

Portanto, a despeito de o sistema jurídico não contemplar previsão expressa de estabilidade no emprego para o portador de moléstia grave, presume-se discriminatória a sua dispensa,, pois a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos estreitos limites da função social do contrato, sobretudo quando o empregador não sofre restrição patrimonial pela manutenção do vínculo de emprego em razão da venda do tempo de trabalho em troca do salário e da manutenção da vida.

* Advogado. Mestre em Direto do Trabalho pela UFPR. e-mail: christian@machadoadvogados.com.br